A Munganga Promoção Cultural

A MUNGANGA PROMOÇÃO CULTURAL: O Brejo Isso!

terça-feira, 22 de março de 2022

BODAS DE OURO DOS MEUS PAIS

 


A história de amor dos meus pais, Sebastião e Tôta, começou em 1968, na festa de coroação de Nossa Senhora da Conceição, no município de Porteiras, Ceará. Foi ali onde foram apresentados e começaram o namoro. Ela, dezoito anos, uma morena de cabelos longos e olhos de cigana; ele, vinte e dois anos, galego dos olhos verdes.

Já haviam se visto em outras ocasiões, pela praça de Brejo Santo, no Cine Alvorada, no comércio – os olhares já se cruzavam cúmplices. Era ela uma estudante normalista; ele, um jovem barbeiro profissional, emigrado da Paraíba, chegado a Brejo Santo há cerca de dois anos, onde encontrou prosperidade para suas mãos habilidosas.

O namoro ia bem, sob a vigília constante de Zé Milagres e D. Hosana, pais da moça, e a censura de Levina, avó da apaixonada. Levina era cismada com o rapaz. Gabava-se dos próprios olhos azuis e implicava com os olhos verdes de Sebastião: dizia que olhos verdes indicavam falsidade. Tôta achava engraçada essa implicância da avó, até que, certo dia, o seu mundo desabou. Um amiga veio lhe trazer uma decepcionante notícia: tinha ouvido, em um programa romântico da Rádio Educadora do Crato, um recado enviado pela “noiva” de Sebastião, residente no Barro, cobrando sua presença. Ele era noivo de outra! Foi o mesmo que a morte! Seus sonhos, sua paixão, seus sentimentos desabaram. Chorou, lastimou-se, adoeceu de tristeza e ainda teve de ouvir o discurso de Levina: - Bem que eu lhe disse, fia! Esse povo dos zói verdes não se pode confiar! E cantarolava uma velha canção que, segundo ela, confirmava sua teoria:

“Era o meu lindo jangadeiro

De olhos da cor verde do mar

Também como ele traiçoeiro

Mentiu-me tanto o seu olhar!”

Tôta demorou para aliviar aquela profunda tristeza. Não quis mais vê-lo, não deu espaço para suas justificações. Cortava caminho para não encontrá-lo; evitava estar onde ele pudesse aparecer. Mas Sebastião era insistente. Mandava recados, marcava encontros, queria se explicar, recebendo a indiferença como resposta. Oferecia-lhe músicas pela rádio: “Essa vai para Tôta, em Brejo Santo, O Mérito do Perdão, de Roberto Silva. Quem oferece é Sebastião Gomes: o eterno apaixonado.” E a música era um pedido de desculpas:

“Quem se humilha e quer perdão

Merece ser atendido.

Eu errei, meu coração,

Hoje estou arrependido!

Se você me perdoar,

Prometo nunca mais errar!”

Tirou um dia inteiro para pastorá-la e, quando ela subia para o ginásio, no seu traje costumeiro de normalista, atalhou-a e suplicou para que lhe ouvisse. Havia terminado o noivado, na verdade, já estava em processo de término há muito tempo. Mostrou-lhe a carta do fim, os bilhetes, as fotografias devolvidas e até a aliança! Implorou pelo seu perdão. Era única mulher da sua vida!

Um coração apaixonado sempre perdoa, rendido pelas esperanças de felicidade. E foi assim que voltaram o namoro. Ele só teve de enfrentar as rabissacas de Levina e o olhar não muito lisonjeiro de Sêo Zé Milagres. O namoro se arrastava já por quatro anos e o pai não via muito futuro naquela união:

- Ele vai lhe enrolar igual fez com a prima! Ele não tem intenções de casar. Não quero cabra alisando banco aqui em casa. – E ordenou que a filha terminasse aquele namoro sem futuro. Deu-lhe um ultimato.

Tôta se viu novamente entre a cruz e a espada. O que fazer? Estavam apaixonados. Ano a ano faziam promessas de casar, mas a situação financeira do rapaz era difícil, pois era arrimo de família – recentemente havia trazido os pais para morar em Brejo Santo, com os demais irmãos... Só tinha um jeito de resolver aquela pendenga: e se eles fugissem?

- Fugir? Ela perguntou, apavorada.

- Sim, fugir! Se a gente fugir, Sêo Zé Milagres vai ter que nos aceitar, porque assim a gente casa!

A ideia da fuga passou a alimentá-la, paralelamente a um grande medo. Para viver seu grande amor era preciso ter de desagradar ao pai, irresoluto sobre a necessidade de pôr um fim à união dos dois. Ensaiou inúmeras vezes a fuga, mas faltava-lhe coragem, até que o pai marcou no calendário:

- Até o fim da semana eu quero esse namoro terminado, ou você vai se ver comigo!

Certa noite, pediu ao pai para ir até o Café de D. Edésia, lanchar o último doce, em companhia do namorado. Naquele dia resolveria, o pai não se preocupasse. Sêo Zé concordou com aquela última saída, mas estivesse de volta antes das oito.

Saíram com a roupa do corpo, fretaram um carro, na Praça, e fugiram para a cidade do Barro, onde moravam uns parentes de Sebastião.

Sêo Zé Milagres, às oito em ponto já estava num pé e noutro, olhos atentos no rumo da praça. Pegou uma corda! “Quando ela chegar, ela me paga!” Deu nove, deu dez... Coçava a cabeça e as orelhas impacientemente! Saiu a procurá-la por todos os cantos. Nada. Foi Dora, a empregada gaga, quem sugeriu o destino:

- Ma-ma-madinha Hosana, eu-eu-eu acho que o ga-ga-ga-lego bu-bu-chudo carregou nossa To-totinha!

Sêo Zé Milagres ficou fumando numa telha de ódio, ao concluir que Dora tinha razão! Arrenegou o nome da filha. Proibiu que dissessem o nome dela dentro de casa. Uma tristeza grande consumiu a casa. No outro dia, Sebastião voltou a trabalhar na barbearia e anunciou para quem quisesse ouvir que havia carregado a filha do velho Zé Milagres. Mandou um tio com a missão diplomática de acalmar a fera e contar que Tôta estava em casa de família, passava bem, não se preocupassem. Sêo Zé não quis acordo. Para ele, a filha estava morta; fosse do Barro para mais longe, que ele não lhe reconhecia nem a abençoava mais.

Mas a raiva não durou uma semana. Sentiu falta daquela filha amorosa, que na vida só tinha lhe dado gosto. Não aguentava ver o cachorro Cherry, triste, ganindo, chamando pela dona; nem a ladainha de Hosana, pedindo que amolecesse aquele coração. Rendeu-se, mandou buscar a filha para fazer o casamento.

Era o dia 23 de Março de 1972, há 50 anos atrás. Foi o padre Dermival de Anchieta Gondim quem celebrou o enlace matrimonial. Ao longo desse tempo todo, dia após dia, Zé Milagres foi descobrindo no genro um grande amigo; ninou os netos que vieram – quatro ao todo: Hércules, Helaine, Heloísa e Hérlon e amou com ternura a filha até seus últimos instantes de vida. Com Levina aconteceu o mesmo, fazendo-a vencer, por fim, o preconceito contra aqueles que têm olhos verdes.

Sebastião e Tôta estavam muito certos acerca do que sentiam, serviram com coragem ao amor que os nutria e acreditaram no destino daquele sentimento, contra tudo, contra todos. Construíram uma família, na humildade e simplicidade. Na estrada, encontraram dificuldades, mas também, preciosas vitórias.

A história de amor dos meus pais lembra-me as palavras sagradas da carta de Paulo aos Coríntios: Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor - estes três, mas o maior destes é o amor, porque o amor tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.

Hérlon Fernandes Gomes

Porto Velho, 22 de Março de 2022