A Munganga Promoção Cultural

A MUNGANGA PROMOÇÃO CULTURAL: O Brejo Isso!

sábado, 15 de outubro de 2022

TICO RC NAS ONDAS DO RÁDIO: O FÃ DO REI E DA MEMÓRIA DA MÚSICA

Tico RC com o cantor Ronie Von, no Brejo Santo União Clube. Roberta ao centro.
Arquivo pessoal.

A história de um lugar pode ser contada pelo conhecimento de seus homens e mulheres, que cresceram, viram e contribuíram com a formação de sua sociedade. Para se conhecer um lugar, é imprescindível, portanto, observar sua gente. 

Brejo Santo é uma cidade do interior cheia de personalidades interessantes. É uma cidade que goza de desenvolvimento, e ainda conserva seu ar pacato, uma certa identidade própria de seu povo.

Quero contar a vocês a história de um menino, que agarrado a suas ilusões infantis conseguiu edificar um sonho: uma rádio comunitária. A história desse menino e dessa rádio são bonitos recortes da história brejo-santense. Esta é história de Tico RC e a rádio Padre Pedro FM.

Em 11 de junho de 1955, nascia Francisco José Pereira, na Rua da Palha, em uma casa simples, na pacata Brejo Santo, sul do Ceará – no Cariri encantado.

Primogênito de uma prole de seis filhos, Tico, como desde criança foi carinhosamente apelidado, era uma criança inquieta, sonhadora. Sua alegria eram o cinema, os circos, os parques de diversão, as brincadeiras livres.

Alfabetizou-se em uma escola que funcionava no primeiro andar do Cine Paroquial, ambos administrados pelo padre Dermival, coadjutor do padre Pedro Inácio Ribeiro, o bom santo e velho pároco.

A primeira vez que entrou no cinema, foi como se estivesse dentro de um sonho: as imagens em movimento, a música, os artistas... Ria com os filmes de Mazzaropi, conhecia o Brasil pelos filmes da Cinelândia! Seu grande ídolo era Waldick Soriano, que lhe aparecia nas canções executadas no sistema de som de Zezim Moreira e dos parques de diversão que de vez em quando davam a alegria de se instalar no Brejo perdido. Se quisessem encontrar Tico, nessas ocasiões, pudesse estar certo da grande probabilidade de ele estar colado à cabine de som, olhando admirado as capas dos LPs, com os retratos expostos dos artistas, perguntando mil e uma coisas ao locutor.

Foi numa noite dessas que ele foi contagiado por um ritmo, por um artista. O sistema de som executava acordes novos, uma música diferente, rebelde. Correu até a cabine para saber quem era o artista.

- É Roberto Carlos, menino!

Tico chegou em casa feliz, cantando o viciante refrão: Só quero que você me aqueça neste inverno, e que tudo mais vá pro inferno.

O pai, católico devoto, não gostou daquela música e seu estilo, ordenando que o filho abandonasse essa história de jovem guarda e seus modismos. Fosse gostar de Nelson Gonçalves, que era um cantor de respeito. Todavia, não obstante os reclamos do pai, ouvir Roberto Carlos e seguir a moda do iê-iê-iê passaram a ser o pecado secreto de Tico.

Desde menino, premido pela necessidade e em busca de poder vivenciar seus pequenos luxos, vendia guloseimas feitas pelo pai, no Cine Paroquial e nos jogos de futebol acontecidos num quadro atrás da Igreja Matriz. Eram cocadas e amendoins torrados e caramelizados. Tico voltava para casa de bolsos cheios e tabuleiro vazio.

Na época, a palavra bullying ainda não se fazia ouvir como hoje, mas a prática de certo preconceito em cima da condição de um simples vendedor de cocadas, fez o menino abandonar o ofício. Que moça teria gosto em namorar um com aquele futuro?

Uma manhã, passando pela calçada do Cine Alvorada, o adolescente Tico sentiu o coração acelerar ao ler na tabuleta, enfeitada com letras garrafais: CINE ALVORADA EXIBE “ROBERTO CARLOS, EM RITMO DE AVENTURA.”

Foi tomado por um êxtase, mas a situação financeira não estava boa; cinema era luxo. O desânimo bateu, mas foi embora logo. Seguiu até a praça, conversar com um amigo engraxate. Ele fazia bico de limpar o cinema em troca de uma entrada. Não teria ele a moral de colocá-lo para dentro, a ver o filme? Ajudaria a limpar o salão, estava muito bem disposto.

Naquele dia, o engraxate e Tico estavam com sorte. O primeiro havia recebido umas encomendas de um grã-fino, da Rua do Araújo, para engraxar-lhe uma dúzia de sapatos; já Tico, porque pegava aquela oportunidade, como um presente precioso. Aquele ingresso era tudo o que ele queria.

Deu-se a limpar o cinema, como uma joia: para fazer jus ao desejo e porque Roberto Carlos merecia estrear no Brejo, em grande estilo. Cortinas de veludo sacudidas, cadeiras limpas, uma por uma... Chão varrido, passado o pano, com um cheiro fresco de eucalipto, Tico acendeu todas as luzes do cinema e ficou a sonhar com a tela branca e o momento em que apareceria seu ídolo. Despertou do devaneio com a chegada de Sr. Benôni, o dono do cinema, assustado com aquelas luzes todas acesas, em plena luz do dia. Não era dono de Paulo Afonso! E afinal, o que ele fazia ali?

Tico explicou todas as manobras, descreveu a limpeza, enfatizando as minúcias:

- Desafio o senhor a encontrar um resto de chiclete sequer pregado nas poltronas, sêo Benôni...

O chefe estava realmente admirado:

- Este cinema só esteve tão limpo e bem arrumado, assim, no dia da inauguração. Você é mesmo caprichoso, rapaz! Está contratado. Mas você não merece ser um varredor, Tico. Vejo um futuro em você. Você será meu ajudante de bilheteria. – A verdade é que Benôni Anselmo, o maior amante da sétima arte que Brejo Santo já teve, comovia-se com o amor do menino por um ídolo, pela arte. Ele também fora assim.


Depois daquela incrível matinê, Tico voltou para casa duplamente feliz: por ter visto seu ídolo na gigante tela do cinema e pelo convite para trabalhar na bilheteria do luxuoso Cine Alvorada, que dava banho de suntuosidade no modesto Cine Paroquial. Ganhava a oportunidade de trabalhar onde o mundo era fantasia e arte e cativava para junto de si um grande amigo.

O adolescente Tico. Na moda da jovem guarda.
Arquivo Pessoal.

Em casa, no quintal cercado de varas e cheio de árvores frutíferas, ele criava seus espetáculos. Era o próprio circo, onde gatos eram leões e cachorros eram ursos; era a sua rádio, onde ele apresentava um show de calouros para os amigos e anunciava principalmente sucessos do Rei.

Deixa de trabalhar do cinema, porque recebe uma proposta para trabalhar de contínuo no escritório de contabilidade de Aldo Leite, onde logo se destacará pela dedicada organização de suas tarefas. Com seu primeiro salário, compra um rádio – seu brinquedo de luxo.
Enlace Matrimonial. Arquivo Pessoal

É nessa época que conhece Verinha, uma moça estagiária do trabalho, que roubou seus encantos desde o primeiro instante. Tornaram-se logo amigos. Verinha era moça prendada, modista de mão cheia e gostava de ler as revistas do rádio. Tinha muita afinidade com Tico – corrigia até “seus erros de português ruim”; desenhava e costurava suas roupas, ao estilo dos artistas da jovem guarda. Tico, assim, apaixonou-se inevitavelmente pela moça, e tristemente sentia que ela era muita areia pro seu caminhão. Lutou, para não ultrapassar além de suas intenções de fiel amigo, até que, não suportando mais as dores de cotovelo daquele amor platônico, resolveu arriscar. Levou um gravador para a janela da moça, de noite, onde pôs a tocar, por umas três vezes, PROPOSTA, sucesso da época, de Roberto Carlos: Eu te proponho/Não dizer nada/Seguirmos juntos/A mesma estrada/Que continua/ Depois do amor/ No amanhecer.

Casam-se logo. A primogênita do casal leva o nome de Roberta. Vai ver seja dessa época que se incorporou definitivamente o “RC” ao seu nome, sigla de seu ídolo, tão marcante em tantos momentos de sua vida.

Tico e sua eterna namorada: Verinha.
Arquivo Pessoal.

Tico, de estudante de contabilidade, passa a professor desse curso, no renomado Colégio Padre Viana, cativado por mais um grande amigo que a vida lhe confirma: o professor José Teles de Carvalho. Seu escritório e sua carreira seguem de sucesso. A família recebe mais dois filhos, Paulo Renato e Ana Carla.
Com o Professor José Teles de Carvalho.
Arquivo Pessoal

No final dos anos 80, Tico RC guia um programa musical na Rádio AM Sul Cearense, sobre o Rei Roberto Carlos. Amante da boemia, sua vida é marcada pela presença certa em festas famosas no Brejo Santo União Clube. Foi membro atuante em promoções afins, como o famoso Baile Preto e Branco, organizado pela maçonaria, que reunia a fina sociedade de Brejo Santo.

Com o cantor Altemar Dutra. Brejo Santo União Clube. Arquivo Pessoal.

Com o cantor Nelson Gonçalves e amigos. Brejo Santo União Clube. Arquivo Pessoal.


Por essas noites boêmias brejo-santenses, conheceu Altemar Dutra, Ronie Von, Nelson Gonçalves, Moacir Franco, Jerry Adriani, Renato e seus Blue Caps, Waldick Soriano e tantos outros. Infelizmente, nunca teve o prazer de poder encontrar o Rei Roberto Carlos, de pertinho assim e dar-lhe um abraço do tamanho de sua admiração e dedicação.

Em 31 de Julho de 1996, em prédio particular construído onde antes era sua casa, na antiga Rua da Palha, passou a funcionar a primeira Rádio FM de Brejo Santo: a Padre Pedro FM, 104,9, uma rádio comunitária concedida a um grupo de amigos, do qual Tico era o grande entusiasta.

Sob a proteção divina de Padre Pedro Inácio Ribeiro, que nomeia a FM, a rádio segue no ar há 26 anos. Por ela já passaram muitos locutores e colaboradores inesquecíveis, com programas educativos, a exemplo da memorialista Marineusa Santana e outros de raízes sertanejas, como dos saudosos Chagas Arcelino e Expedido FM, espécies de Ludugero de seu tempo, além de tantos outros homens e mulheres de gabarito da nossa cultura.

Tico: cercado pelo Rei e pela memória da música.

Tico, pilotando seu sonho, ao longo dos anos, vem formando ouvintes fieis e forjando novos fãs do Rei. Suas histórias, nas ondas do rádio, são crônicas espontâneas de saudades, embaladas quase sempre por um clássico da jovem guarda.

A Rádio Padre Pedro FM faz parte da minha memória afetiva. Dia desses, dentro do meu carro, em Porto Velho, sintonizei uma playlist no meu Spotfy, criada com base nesse passado nostálgico. Jerry Adriani cantava “Rosas Rubras”, transportando meus sentidos a um longínquo final de tarde de sábado, família reunida, churrasco assando, feijão verde no fogo, cerveja e saudade.

Tico RC é uma personalidade autêntica, homem orgulhoso de suas conquistas, pai e avô dedicado. A vida lhe é próspera, coroada de sua grande família, agora com mais duas filhas, Ana Renata e Ana Júlia, além dos netos e netas.

A Rádio Padre Pedro FM é o Divã de Tico, onde o fundador se abre em reflexões, em rememorar o passado, a criança que foi, o menino que ainda vive nele; suas emoções, detalhes de um passado imorredouro.

Por mais de um quarto de século, posso dizer que a Rádio Padre Pedro FM é uma companhia frequente em diversos lares de Brejo Santo, zona urbana, zona rural, seja no café, no almoço, no fim das tardes, nos sábados, domingos e feriados, como um livro falado, um companheiro, um amigo conselheiro, que resgata lembranças e momentos felizes, com o melhor da canção. Tico RC e a Rádio Padre Pedro FM são cultura e são do povo.


Hérlon Fernandes Gomes, Porto Velho, Rondônia. 16 de Outubro de 2022.


Para meus pais, Sebastião e Tôta, fãs da rádio Padre Pedro FM, amigos de Tico RC e família. Ao amigo Paulo Renato, que tem seguido os caminhos do pai, navegando com o ouvinte pelas ondas do rádio.