Tese de José Américo Monteiro Lacerda
para a revista Itaytera, n° 39, de 1995.
Padre Antônio Gomes de Araújo: Nasceu em 06 de janeiro de 1900; Ordenou-se em 17 de abril de 1927; Faleceu em 26 de janeiro de 1989. |
"Aqueles que escrevem a
história e aqueles que a estudam devem procurar ver de que modo um
acontecimento conduziu a outro, e como o passado, em sua totalidade, é um
prólogo do presente, mas devem também apreciar o passado em seus próprios
termos, examinando-o, tanto quanto possível, com os olhos e o espírito daqueles
que o viveram, "Edward Mcnall Burnes e outros (HISTORIA DA CIVILIZAÇÃO
OCIDENTAL).
Os registros históricos
estruturam as conclusões e atitudes posteriores, quais estágios de foguetes no
trabalho de conduzirem naves espaciais a céus mais avançados. Gerações a
conduzirem gerações, enquanto que se aperfeiçoam os homens na faina de novas
descobertas científicas, refinamento tecnológico, em prática pelo engenho
soberano da Política, por vezes carecendo de progressos compatíveis noutras áreas;
hoje sobretudo na área da Ética.
Muito se tem que aprender
dos tempos passados. A grande m estra da História, segundo Heródoto, fornece
seus ensinamentos nas páginas carcomidas dos intérpretes, por vezes esquecidos.
Na era da velocidade eletrônica, tempo de facilidade e superfície, os registros
se multiplicam por milhões, o que não corresponde às chances de se acompanhar
tal profusão de recursos, vistos aspectos importantes da elitização do
conhecimento nas mãos de uma parte mínima da Humanidade. Tanto esforço arcaico
a resultar em pouco ou quase nada, qual se andássemos para trás, numa regressão
perversa de valores, do "homem lobo de si mesmo", praticando o
aprendizado das horas em sentido contrário. Quem quer pode olhar de frente e
ver o quanto se destrói nas oportunidades do futuro. Armas como que perfeitas,
para matar. Destruição continuada das reservas naturais. Especialização dos
métodos de reter o capital, por parte de minorias privilegiadas. Técnicas de
manipulação das multidões sem nexo. Industrialização dirigida ao consumo apenas
imediato de seres vegetais. Empacotamento de um mundo esfumaçado de cidades
enormes, viveiros gigantes, apáticos, semelhantes a granjas sanitárias,
aleijões exóticos, apenas equívocos. E se dispor de tanto material crítico
acumulado para compor o quadro cinzento em que se transformou a História.
HISTÓRIA: FAZER OU ESCREVER
Independente de tudo isso,
dos ruídos da engrenagem pensa, a cena deve continuar, pois aqui nos achamos,
equações ainda imperfeitas no imenso labirinto da perfeição. Enquanto líderes
assumem a profissão da miséria de explorar o chão social em favor de si, em
detrimento da sociedade, ou tro s conseguem vencer a fraqueza das facilidades e
rompem a bolsa de um novo tempo.
No entanto permanece a grande
alternativa de cada um: fazer ou escrever a história. A dicotomia universal de
se ser teórico ou prático no que concerne aos papéis existenciais.
Os sonhos de muito raro vêm
a se concretizar, vistas limitações regulamentares, fraquezas de conjuntura. A
família põe e Moloc dispõe, parodiando o conceito popular de destino. A macro estrutura encurrala os componentes, faíscas dispersas,
aguardando-se genialidade daqueles que possam vir a comandar os botões. As
alegativas, sobretudo nos países subdesenvolvidos, gravitam em torno de amarrações antecedentes, conchavos, em torno de compromissos
corporacionais que os impedem de agir a posteriori, prazo esse preenchido pela
produção intelectual das universidades, de uma juventude inerte, comprimida,
discriminada.
Cremos haver anteposto nosso
conceito das fragilidades dessa Ciência, conduzida de modo magistral pelos
poderosos a favor de seus próprios desígnios, largando-nos cascas e nós,
vencidos que seríamos, não fosse a certeza das determinações superiores de
proveniência nem um pouco duvidosa, numa interpretação cósmica milenária, acima das em presas religiosas e dos sicários de plantão, nos
gabinetes.
A ESCOLA DO CARIRI
Esta região interiorana do
Ceará, denominada Cariri, estabelecida em conseqüência de microclima peculiar,
no lado verde da Chapada do Araripe, teve em Crato, por mais de um século, seu
pólo de atração. Nesta cidade floresceu ambiente cultural paralelo a época
produtiva intensa, à sombra do cultivo da cana-de açúcar, do algodão, da
mandioca, fruteiras dos brejos, se não quisermos considerar também a pecuária
intensiva à volta das bagaceiras dos engenhos e um comércio promissor, dada a
afluência circunstante de outros municípios, tanto do estado, quanto dos
fronteiriços de Pernambuco, Paraíba e Piauí.
O Seminário São José viveu
período áureo, seguido pelos colégios Diocesano e Santa Teresa, todos
localizados em Crato, futuras sementes das primeiras faculdades e posterior
Universidade Regional do Cariri, a se efetivar na segunda metade da década de
80.
Como resultante, nesta parte
frutificaram estudiosos, professores, magistrados, jornalistas, militares,
médicos, advogados, autodidatas, numa produção de época que por si só fez
história. Reuniram-se, publicaram, fundaram grêmio de debates, o Instituto
Cultural do Cariri (18 de outubro de 1953) e podem ser vistos, desde esta
quadra de tempo, como a Escola Histórica do Cariri, da qual participaram como
principais elementos: Dr. lrineu Pinheiro, Prof.José Alves de Figueiredo Filho,
Pe .Antônio Gomes de Araújo, Gal. Raimundo Pinheiro Teles, Cel. Otacílio Anselmo,
Dr.Raimundo de Oliveira Borges, Prof. Joaryvar Macedo (Joaquim Lobo de Macedo),
João Lindemberg de Aquino, Prof.José Newton Alves de Sousa, F.S.Nascimento e
Nertan Macedo.
Muitas publicações marcaram
a atuação do grupo, resultando em substrato para a nítida compreensão da vida
nesta parte do mundo, dentro de ótica efetiva da melhor qualidade.
Uma revista consubstanciou o
traço que uniu tantas e raras presenças, a Itaytera, ora (1993) em seu número
37, lançada que foi em 1955, tendo no jornalista João Lindemberg de Aquino o
seu continuador, por décadas inteiras.
SUA VIDA
Antônio Gomes de Araújo
nasceu em Brejo Santo, à época vila, a 06 de janeiro de 1900, filho de José
Nicodemos da Silva e Maria Gomes de Araújo Lima, de quem herdou os dois
sobrenomes. No mesmo município iniciou seus estudos e permaneceu até 1918. Do
ano seguinte a 1921 cursou o Seminário Menor do Seminário Arquiepiscopal do
Ceará (Fortaleza), vindo fazer, em 1922, o Curso Superior do Seminário Maior no Seminário Episcopal do Crato, presbiterando-se em 17 de abril de
1927.
De 1927 a 1932 lecionou
História Eclesiástica e Filosofia nos Cursos Secundário e Superior do Seminário
do Crato. De 1929 a 1930, História, na Escola da Associação dos Empregados no
Comércio, e de 1930 a 1960, História, Latim e Português, no Ginásio do Crato,
depois Colégio Diocesano, quando adquiriu aposentadoria por tempo de serviço.
Exerceu as funções de
capelão da Concentração dos Flagelados de Buriti (Crato), e de prefeito do
internato e externato do Ginásio do Crato, sendo nomeado em 1935 inspetor do
Ensino Normal do Estado junto à Escola Normal Santa Teresa de Jesus, colégio do
mesmo nome, cargo que exerceu por mais de três décadas. De 1941 a 1962 foi
também capelão do Cemitério, em Crato.
Consideramos ainda que
desempenhou os papéis de sócio correspondente do Instituto Histórico do Ceará,
sócio correspondente da Academia Cearense de Letras,
vice-presidente do Instituto Cultural do Cariri por quase vinte anos, desde a
sua primeira diretoria, onde assumiu a presidência interina de 21 de maio a 11
de dezembro de 1954, e sócio-correspondente do Instituto Histórico e Geográfico
Paraibano, além de haver ministrado História Antiga e Medieval na Faculdade de
Filosofia do Crato, agregada à Universidade Federal do Ceará.
Estas foram as principais
referências cronológicas que balizaram a vida do Pe. Gomes, conforme estudo
realizado pelo Prof.Figueiredo Filho, em artigo da revista Itaytera n° 20, ano
de 1976.
A BIBLIOGRAFIA
Do mesmo artigo do
Prof. Figueirêdo, transcrevem os abaixo relação completa das obras escritas
pelo Pe. Antônio Gomes de Araújo:
- DISCURSO DE PARANINFO, 1964;
- FUNDADOR-MOR DA METRÓPOLE MISSÃO-VELHENSE, 1949/1950;
- PRIMEIRO VIGÁRIO DO CRATO, 1950;
- CONCURSO DA BAHIA NA FORMAÇÃO DA GENS CARIRIENSE, 1950;
- NATURALIDADE DE BÁRBARA DE ALENCAR (A HEROÍNA DO CRATO), 1951;
- DISCURSO DE PARANINFO, 1964;
- FUNDADOR-MOR DA METRÓPOLE MISSÃO-VELHENSE, 1949/1950;
- PRIMEIRO VIGÁRIO DO CRATO, 1950;
- CONCURSO DA BAHIA NA FORMAÇÃO DA GENS CARIRIENSE, 1950;
- NATURALIDADE DE BÁRBARA DE ALENCAR (A HEROÍNA DO CRATO), 1951;
- OS ARNAUD NO CARIRI, 1953;
- O CARIRI: SESMEIROS E POVOADORES, 1953;
- DO CURRAL AO CiCLO AGRÍCOLA, 1951;
- A CIDADE DE FREI CARLOS; 1950;
- UM CIVILIZADOR DO CARIRI, 1955;
- CERTIDÕES DE BATISMO DE BÁRBARA DE ALENCAR, 1953;
- A BAHIA NAS RAÍZES DO CARIRI, 1955;
- APOSTOLADO DO EMBUSTE, 1956;
- RAÍZES SERGIPANAS...(SÉCULO XVIII), 1957;
- PADRE PEDRO RIBEIRO DA SILVA, O FUNDADOR E PRIMEIRO CAPELÃO DE JUAZEIRO DO NORTE, 1958;
- O CARIRI: SESMEIROS E POVOADORES, 1953;
- DO CURRAL AO CiCLO AGRÍCOLA, 1951;
- A CIDADE DE FREI CARLOS; 1950;
- UM CIVILIZADOR DO CARIRI, 1955;
- CERTIDÕES DE BATISMO DE BÁRBARA DE ALENCAR, 1953;
- A BAHIA NAS RAÍZES DO CARIRI, 1955;
- APOSTOLADO DO EMBUSTE, 1956;
- RAÍZES SERGIPANAS...(SÉCULO XVIII), 1957;
- PADRE PEDRO RIBEIRO DA SILVA, O FUNDADOR E PRIMEIRO CAPELÃO DE JUAZEIRO DO NORTE, 1958;
- O MAGNÍFICO REITOR DA
UNIVERSIDADE DO CEARÁ, ASCENDENTES E COLATERAIS,
1959;
- MITOS E REALIDADES. O MITO
DE FREI FIDELIS...,1961;
- EM DEFESA DA MEMÓRIA DE BÁRBARA DE ALENCAR,1961;
- EM DEFESA DA MEMÓRIA DE BÁRBARA DE ALENCAR,1961;
- À MARGEM DE "A MARGEM
DA HISTORIA DO CEARA", DE GUSTAVO BARROSO, 1962;
-1817 NO CARIRI, 1962;
- A HEROÍNA BÁRBARA DE ALENCAR, 1963/1964;
- A COMUNIDADE ORIGINÁRIA. O FUNDADOR HISTÓRICO (REFERÊNCIA À MISSÃO DO MIRANDA), 1964;
-1817 NO CARIRI, 1962;
- A HEROÍNA BÁRBARA DE ALENCAR, 1963/1964;
- A COMUNIDADE ORIGINÁRIA. O FUNDADOR HISTÓRICO (REFERÊNCIA À MISSÃO DO MIRANDA), 1964;
- A REVOLUÇÃO DOS ALENCAR
(1817), 1964 (inédito);
- ALENCAR NOS IDOS DE 17 E 24 E OUTRAS NOTAS, 1965/1966;
- ALENCAR NOS IDOS DE 17 E 24 E OUTRAS NOTAS, 1965/1966;
- O AUTOR DE IRACEMA;
CARIRIENSE DE ORIGEM, 1965;
- ALDEAMENTO DA MISSÃO DO MIRANDA E REVELAÇÃO DE SUA ARQUEOLOGIA, 1965;
- ALDEAMENTO DA MISSÃO DO MIRANDA E REVELAÇÃO DE SUA ARQUEOLOGIA, 1965;
- CONSELHO DE ORDENAÇÕES
CONTRA ACESSO DO PADRE CÍCERO AS SAGRADAS ORDENS E SUA PERMANÊNCIA NO
SEMINÁRIO, 1965 (inédito);
- CIDADE DE FREI CARLOS, 1973; e
- POVOAMENTO DO CARIRI, 1974.
- POVOAMENTO DO CARIRI, 1974.
O PROFESSOR
Ainda no Seminário, o Pe. Gomes
externalizou sua tendência para ensinar História. Desempenhou o magistério
quase com dedicação exclusiva, marcando sua época com personalidade forte de
quem viveu as contradições doutrinárias do integralismo de Plínio
Salgado, simpatizante que foi de suas idéias, ao lado de vários outros membros
do clero cratense da década de 40.
Seus ex-alunos, uma geração
inteira que estudou no Colégio Diocesano e as primeiras turmas da Faculdade de
Filosofia, podem, sem maiores esforços, recordar de sua aparência física, tipo
espigado, magro, meio calvo, rosto longo, queixo apontado, sempre de batina,
verbo fluente, satírico, autoritário, acessível, bem humorado, por vezes
surpreendente em suas atitudes para com a turma.
Numa ocasião, no Colégio
Diocesano, ao se deparar com apenas três alunos em sala, enquanto os demais
faziam greve, ele deu presença aos que estavam fora, excluindo os que
compareciam, para punir a falta de solidariedade.
Dentre seus livros, dos
quais uma parte ainda se conserva, numa sala especial (Núcleo de Estudos
Históricos Pe. Antônio Gomes de Araújo) que lhe foi dedicada no Instituto
Ecológico e Cultural Martins Filho, da Universidade Regional do Cariri, em
Crato, fomos encontrar 31 tomos de apontamentos, os mais variados, escritos
pelo próprio punho conforme áreas de estudo, desde a Revolução Francesa, idéias
libertárias na América, Nassau e sua administração no Brasil, até marçonaria,
comunismo, a doutrina de Rousseau, domínio holandês no Nordeste brasileiro.
Esse rico material fica à disposição
para pesquisa, levando-se em conta que o instituto dispõe de um índice
organizado por tom o, do qual ainda anotamos mais alguns títulos, em meio a muitos outros, que aqui repassam os para efeito de conhecimento das áreas que
lhe interessavam. São eles: a civilização na Idade Média, o atraso do Brasil
frente aos Estados.
Unidos, herança dos povos
históricos do Oriente, principais causas das civilizações, evolução da história
das primeiras raças, cultos dos mortos, imperialismo, a índia e os vedas,
inflação, ameríndios no Brasil, influências indígenas, os judeus e o tráfico
negro, Independência do Brasil, expulsão dos jesuítas, o jesuíta e o território
nacional, Confederação do Equador (republicana e separatista), colonização,
mineração, o açúcar, o gado, impérios, guerras, Caxias, Abolição e República.
NO INSTITUTO CULTURAL DO CARIRI
Com a institucionalização da
pesquisa histórica através deste órgão independente do sistema oficial, muito
se preservou dos registros caririenses.
Setores da nossa história
receberam tratamento exclusivo do Pe. Antônio Gomes, que estabeleceu sua
produção sobretudo em quatro principais ângulos: as origens
caririenses, a participação dos Alencares nas revoluções de 1817 e 1824, as
lutas da Independência e personalidades, inclusive eclesiásticas, da história
regional, cabendo ao Pe. Cícero e aos acontecimentos juazeirenses um capítulo
isolado.
Sobre as origens
caririenses, deteve-se na verificação de documentos cartorários remotos das
comarcas de Crato, Brejo Santo, Missão Velha, Milagres, Barbalha e Jardim,
visando estabelecer os troncos genealógicos dos antigos colonos, compendiando
as primeiras levas da imigração. Cuidou de pinçar a influência da Casa da Torre
da Garcia D'Ávila em plagas cearenses; mapeou a fixação das raízes baianas,
sergipanas e alagoanas. A conquista das terras. Os índios e as missões
catequistas. O povoamento, suas freguesias e fundações. Os primeiros aldeamentos, capelas, sítios, sesmarias, fazendas, bacias. Os prenúncios da cidade de
Crato. O Ceará no século XVII. Devassamento do Nordeste, fundamentos
econômicos, quadro social, paisagem religiosa, os capuchinhos, criação e
organização administrativa de uma vila no Brasil, dentre outros aspectos também por ele considerados em sua obra.
As revoluções de 1817 e 1824
mereceram-lhe muitas páginas, evidenciando a participação intensa dos
Alencares. As personalidades e atuação de Bárbara e seus filhos ganharem trato próprio do
historiógrafo, a ponto de provocar reações de outros estudiosos, como do
Gal. Carlos Studart Filho, em seu livro O PADRE GOMES DE ARAÚJO E "A
REVOLUÇÃO DE 1817 NO CEARÁ", onde observou: "Expondo os fatos de
1817, tal críamos houvessem realmente sucedido, escrevendo sem ódios, nem
simpatias e também sem qualquer propósito de aluir reputações ou criar ídolos,
havíamos, sem o perceber, nem desejar, irritado um dos donos da história do
Cariri, o respeitável Padre Gomes, essa águia do saber histórico que se aninha
entre as venerandas arcadas do Instituto Cultural do Cariri. "E mais
adiante: "Quanto a pretender, como faz o ilustre Padre Gomes (Pág. 15 obra
em consideração), que o "Progresso sigiloso" ou seja, aquilo que ele
supõe haver, por motivos secretos, deixado de figurar nos autos da devassa deva
prevalecer contra o documento no caso, o term o de prisão de D.Bárbara é
derruir os próprios fundamentos da historiografia; é dar a impressão que
tresvaria.
"Na realidade, porém, o
Padre Gomes não delira; está em perfeita saúde mental; apenas vê os sucessos de
1817, através das lentes deformadoras de um regionalismo estreito".
Alguns escritos seus
acompanharam o desempenho das tropas brasileiras contra os redutos portugueses
do Norte, enaltecendo o papel de José Pereira Filgueiras, que considera o maior
soldado da Independência.
E na quarta vertente de
interesses: perfis eclesiásticos ou patriarcas, a par de outras elaborações;
reunindo elementos a respeito do Pe. Cícero Romão Batista e os milagres de
Juazeiro, publicou na Itaytera n° 2 o artigo APOSTOLADO DO EMBUSTE, onde buscou
desfazer a possibilidade dos fatos propalados, desencadeando acirrada polêmica
com o Pe. Azarias Sobreira, através da imprensa de Fortaleza, cuja repercussão
gerou interferência proibitiva do bispo D. Francisco de Assis Pires, em 15 de
julho de 1956.
O PESQUISADOR
A dedicação de Pe. Gomes às
letras se fez especializar no trato histórico dos materiais que reuniu, sempre
visando detalhar os fatos descritos numa linguagem de acessível comunicação.
Primou pelas referências documentais, persistente no manuseio de tomos em
cartórios e paróquias, colhendo depoimentos de coetâneos, avaliando e
comparando textos, além de estabelecer suas próprias hipóteses.
Ninguém melhor do que o
Prof. José Newton Alves de Sousa para analisar sua personalidade literária,
reafirmando em CONTRIBUIÇÃO DO CARIRI CEARENSE A HISTORIOGRAFIA DO NORDESTE
(Itaytera n° 16) palavras que dissera no I Simpósio de História do Nordeste
Brasileiro (PADRE GOMES DE ARAÚJO E A PESQUISA HISTÓRICA NO CARIRI):
"Espírito inquieto e polêmico, porém, nos princípios, tem, algumas vezes,
saído a campo, pela imprensa, em defesa de suas convicções.
"Não descansa, enquanto
não prova o que diz, ou encontra um fato que retifique o que pensa, ou
prepondere outro motivo superior.
"Por ser um homem sem meias
palavras, vai direto à verdade, doa em quem doer".
No mesmo artigo, o Prof.
José Newton também testifica: "Jamais adulterou ou desfigurou documento.
Jamais leu ou interpretou o que quer que fosse com duplicidade de intenção.
Sempre foi aberto aos outros para os informar do que precisam, embora nem todas
as vezes os outros lhe tenham sabido ser suficientemente leais.
"Defendendo um ponto de
vista, pode exceder-se em ardores polêmicos, mas sem falsear, sem mentir.
"Como pesquisador, é
invariável o seu proceder de homem o objetivo, pertinaz, buscando, corrigindo,
cotejando, confirmando".
No prefácio de UM
CIVILIZADOR DO CARIRI E OUTROS ESTUDOS, localizam os, do Prof. Joaryvar Macedo, as seguintes avaliações: "Espírito criterioso, investigador
brilhante e impenitente, animado do mais vivo interesse pelas indagações sobre
a descoberta, conquista e povoamento da Região, exercendo, obstinada e
pacientemente, a pesquisa, dela partiu, com segurança e equilíbrio, para o
magistério da exegese e da crítica, descobrindo verdades, em meio ao vasto
material disperso.
"Mergulhado, com toda a
dedicação e com toda a diligência, em fontes primárias que, havia dois séculos,
dormiam nos cartórios e arquivos regionais, à espera de um garimpeiro, amiúde
examinou livros e registros, outros etc., muitos dos quais fragmentados e quase
ilegíveis. Destarte, conseguiu imprimir um rumo diferente aos estudos sobre a
formação étnica e social do Vale. Procedeu a inúmeras retificações, pondo luz
onde havia obscuridade. A Antônio Bezerra, João Brígido, Gustavo Barroso e a
outros historiadores de renome, que escreveram também a respeito do Cariri,
pediu a mão à palmatória.
"Em que pese a
implicabilidade do tempo prossegue o Prof. Joaryvar Macedo, que lhe não ensejou
a elaboração de todos os resultados colhidos, ao longo de suas andanças pelos
caminhos poentos dos alfarrábios, publicou sínteses verticais e resenhas
medulares, ora em revistas e jornais, ora sob a forma de plaquetas, propiciando,
assim, aos historiadores regionais do presente e do futuro os frutos opimos de
suas surpreendentes escavações".
ALENCARISMO
O zelo do historiógrafo
pelos vultos e coisas genuínas levou-o ao culto intenso dos heróis regionais,
desde o seminarista José Martiniano Pereira de Alencar, a sua mãe, D. Bárbara
de Alencar, e seus irmãos, Tristão Gonçalves Pereira de Alencar e Pe. Carlos José
Gonçalves dos Santos, tendo em vista haverem sido os esteios da Revolução de
1817, no Ceará. Nas palavras do Prof. Geraldo Nobre, do Departamento de
História da Universidade Estadual do Ceará, no livro HISTÓRIA DO CEARÁ,
"recém-chegado de Pernambuco, o seminarista (Martiniano de Alencar)
contagiara de entusiasmo à sua família, mas conseguirá apenas a passividade do
poderoso Capitão-Mor José Pereira Filgueiras, não obstante o que, na missa
dominical de 3 de maio, lera as proclamações do Governo Revolucionário e
proclamara a República, à qual, em seguida, fez aderir a Câmara daquela Vila,
bem como a do Jardim, onde exercia a maior influência Leonel Pereira de
Alencar, irmão de Dona Bárbara. Estas ações contariam com apoio parcial, devido
às muitas rivalidades no Cariri, contando os Alencares com as dos Bezerra de
Menezes, à frente o Tenente-Coronel miliciano Leandro Bezerra Monteiro, que não
ficou de braços cruzados, promovendo, em poucos dias, a restauração, com o
apoio do Capitão-Mor Filgueiras, a quem fez ver a temerosidade do compromisso
com os rebeldes".
Mais adiante, noutro texto
da mesma coletânea, desta vez de autoria da Profa. Maria do Carmo R. Araújo, do
Curso de História da Universidade Federal do Ceará, grifamos, quanto à
Revolução de 1824: "A análise da participação do Ceará na Confederação do
Equador deve, em princípio, levar em conta dois aspectos: o primeiro refere-se
à permanência da capitania sob a jurisdição de Pernambuco por quase um século e
meio (de 1656 a 1799). Essa subordinação político-administrativa referendava a
subordinação econômica, então existente. De forma que a Carta Régia de 1799
estabelecendo a separação ficou letra morta. O Ceará, sobretudo a região do
Cariri, fronteiriça com as terras pernambucanas, continuou a sua prática
comercial com Pernambuco.
"Pelo alvará de 27 de
abril de 1803, a capitania cearense passou a receber incentivos para o comércio
com o exterior. No entanto, não deixou de haver continuidade nas relações com a
capitania vizinha. Recife polarizava as relações comerciais do Ceará como as
demais capitanias ao redor, que precisavam do seu porto para o escoamento da
sua produção. "O segundo aspecto de acordo com a pesquisadora, está ligado
ao domínio político exercido pela família Alencar na região do Cariri. Desde
1817 os Alencar perseguiam o estabelecimento de uma nova ordem na província. Os
acontecimentos advindos com a independência projetaram favoravelmente para a
cena política, a nível provincial, elementos influentes da zona caririense, cujos
interesses econômicos ligavam-se particularmente a Pernambuco. Foram esses elementos
que fizeram a Confederação do Equador no Ceará".
Demoramo-nos em citações no
objetivo de fundamentar os motivos que levaram o Pe. Antônio Gomes ao
incansável trabalho de preservar ilustres vultos regionais da ação de outros
intérpretes, qual o exemplo referido, da parte do Gal. Studart Filho, sem com
isto negarmo-lhes o valor, tanto que dele ainda queremos citar o que se segue:
"Vencido, não quis, porém, o Padre Gomes render-se à evidência dos fatos
expostos. Preferiu conceber apressadamente e dar curso a uma versão
interpretativa inteiram ente original para os acontecimentos que antecederam e
provocaram o levante caririense de 3 de maio de 1817.
"Visava tal explicação
a reivindicar para José Martiniano o mérito indevido de precursor e fator
principal da rebelião republicana de 17 no Ceará, proposição que consideramos
das mais audaciosas ultimamente surgidas no campo da nossa historiografia
regional. Ela implica, com efeito, em atribuir ao filho de D. Bárbara alheios
predicados e, desse modo, fazê-lo aparecer, na crônica brasileira, com uma
personalidade ainda maior e mais complexa do que aquela que até agora lhe
conhecíamos.
"Nos fastos da
revolução de 17, ele deixaria de ser apenas o seminarista inspirado, vencedor
galhardo dos óbices próprios ao ínvio caminho que o conduziu ao adro da matriz
do Crato e o levou à glória, para se tornar bem maior do que o Ouvidor
Carvalho, em astúcia e prática de manobras solapadoras das instituições
monárquicas".
A título de ilustração,
dizemos que uma obra do Pe. Gomes manter-se-á inédita, caso permaneça
desaparecida. Trata-se de A REVOLUÇÃO DOS ALENCAR, com mais de duzentas
páginas, cujos originais foram entregues, em junho de 1964, ao então Presidente
Humberto de Alencar Castelo Branco, quando de sua visita ao Crato, e de que não
mais se teve notícia.
A QUESTÃO DE JUAZEIRO
Este tema merecerá
particularização, dada sua importância histórica. Muito efeito provocou à
época, inícios da década de 50, agitando a imprensa cearense, sem contudo
motivar outra reação além da polêmica sensacionalista, uma vez que os elementos
materiais da prova já haviam sido eliminados.
Ouçamos, por oportuno,
algumas opiniões a propósito: Nertan Macedo, em O PADRE E A BEATA: "O
milagre aconteceu numa certa manhã, durante a missa, quando o Padre Cícero dava
a comunhão aos fiéis. Uma curiboca entanguida para usarmos a expressão dos que
se ocuparam do caso -, pálida, nervosa e franzina, aproximou-se da mesa eucarística.
O Padre Cícero tirou do cálice uma pequena hóstia branca, depositando-a na
língua dessa devota. Chamava-se Maria de Araújo, nome vulgar.
"Ao fechar a boca e as
pálpebras, sob o manto, ela sentiu escorrer pelas comissuras dos lábios um
líquido viscoso, da cor de sangue, segundo testemunharam os presentes. As
partículas derreteram-se na língua da beata e tomaram, por vezes, a forma de um
coração.
"Tal fato repetiu-se
daí por diante e foi relatado por quantos o tinham assistido e verificado.
"Corria o ano de 1891 e
a substância hematóide, recolhida em panos, que todos queriam ver e tocar,
seria entregue à custódia de sacerdotes e médicos, para que a examinassem e
atestassem se era ou não o sangue de Nosso Senhor Crucificado. Os padres
guardaram esses panos, a sete chaves, numa urna, no sacrário da capela do
Santíssimo Sacramento da Matriz do Crato".
Ralph Delia Cava, em MILAGRE
EM JOASEIRO: "No Vale do Cariri, o povo não se apercebia da sutileza que
permitia ao Padre Cícero e a outros sacerdotes falarem em público sobre os
"fatos extraordinários", contanto que não os qualificassem de
miraculosos. Ninguém em Joaseiro duvidava da ocorrência de um milagre cuja
finalidade tinha sido, pretensamente, revelada a Maria de Araújo, em agosto de
1889: Deus escolhera Joaseiro para ser o centro de onde converteria os
pecadores e salvaria a humanidade. A prova da missão divina do arraial estava
nas levas infindáveis de romeiros que chegavam a Joaseiro. Aí, maçons
brasileiros e protestantes buscavam a absolvição e retornavam à Igreja.
Saravam-se os enfermos e os fiéis refortaleciam a sua fé. Ao partirem de volta,
os romeiros levavam consigo um talismã, uma fita ou um pedaço de fazenda que
tinham sido esfregados no vidro da redoma onde se guardavam os panos e as
toalhas do altar manchados de vermelho pelo que se acreditava ser o Precioso
Sangue de Cristo".
E mais adiante o mesmo autor
acrescenta: "A falta de iniciativa de Dom Joaquim (Dom Joaquim José
Vieira, Bispo de Fortaleza), entre junho de 1890 e maio de 1891, permitiu
enormemente que o milagre criasse raízes entre o clero e os fiéis, tanto no
Vale, como no sertão dos estados vizinhos. Além disso, o seu pedido de que o
Pe. Cícero apresentasse testemunhas "que possam depor sob juramento"
quando à veracidade do milagre tornou-se uma razão para levar os fiéis a
angariar testemunhas em defesa de sua causa. No final de 1890 e princípio de
1891, poucos eram os fiéis que hesitavam em proclamar, de público, a verdade do
milagre".
Luitgarde Oliveira
Cavalcanti Barros, das Universidades Federal e Estadual do Rio de Janeiro, na
coletânea HISTÓRIA DO CEARÁ: "A Questão Religiosa de Juazeiro, embora
aparentemente se tenha apresentado como um problema de existência ou não de
Sangue de Cristo nas hóstias em transformação, na realidade foi uma luta dentro
da Igreja. Essa instituição, que já se batera e continuava na peleja com o
Estado brasileiro, se voltava, por força mesmo da política de romanização, para
uma ação interna pela preservação da hierarquia, submissão dos grupos dominados
de seguidores, pelo monopólio de interpretação (à luz da Teologia) de todo
fenômeno religioso pela autoridade eclesiástica. Essa luta vai expor a
contradição maior dentro da Igreja, qual seja, o universo simbólico das baixas
camadas de crentes o catolicismo popular, frente ao monopólio de interpretação
do religioso pela Teologia, vale dizer, a ruptura entre o catolicismo da
hierarquia e o dos seguidores pobres".
E para completar estes
depoimentos, ouçam os José Comblim, em PADRE CÍCERO DE JUAZEIRO: "Então
dom Joaquim assustou-se: diante dele estava o fantasma das heresias. Já em 1891
dom Joaquim tinha enviado uma comissão de inquérito formada pelos dois padres
letrados da diocese, o padre Clycério da Costa Lobo e o padre Francisco
Ferreira Antero, doutor em teologia. O inquérito durou um mês e os comissários
interrogaram 10 beatas, 8 padres e 5 civis eminentes. Assistira m várias vezes
ao milagre da transformação da hóstia em sangue. Concluíram que se tratava
realmente de fatos sobrenaturais de origem divina.
"Como explicar que
esses dois teólogos tenham tão facilmente garantido a origem divina dos
milagres? Alguns dizem que nesses primeiros tempos da República a espera do fim
do mundo era tão forte que todos estavam dispostos a escolher sinais da
proximidade desse fim do mundo. Em todo caso, os dois padres deram ao bispo o
contrário do relatório que este esperava. O bispo sentiu-se traído pelos
teólogos.
"Em abril de 1892
aconteceu algo que convenceu o bispo de que havia um embusteiro. Foi roubada a
urna que continha as hóstias e os panos manchados de sangue e que o bispo tinha
mandado transferir para Crato. O acusado foi José Joaquim Marrocos,
mestre-escola em Crato. Esse Marrocos tinha sido seminarista, mas foi expulso
do seminário pelos lazaristas franceses. Apaixonava-se por tudo o que era
religião e desde o início tomou a liderança dos movimentos de apoio ao padre Cícero.
Não havia provas, mas de fato, 18 anos mais tarde, depois da morte de Marrocos,
a urna foi descoberta entre os objetos que lhe pertenciam".
A PALAVRA DO PE. GOMES
Das produções do Pe. Gomes
uma se evidenciou desde seu lançamento, vistos os transtornos que veria de
provocar, APOSTOLADO DO EMBUSTE, dedicada pelo autor "à memória de Dom
Joaquim Vieira, herói tranquilo, que desmascarou o embuste, preveniu o cisma e
manteve a dignidade do clero. A memória de Monsenhor Joviniano Barreto,
vigário-mártir, "Revista Itaytera n° 2, ano de 1956.
Neste ponto, achamo-nos na
contingência de citar trechos da obra, no intuito de fornecer dados para uma
interpretação dos acontecidos em Juazeiro, distantes que nos vemos, passado
mais de um século de seus primeiros registros, dada a importância soberana da
pesquisa histórica para orientação das gerações porvindouras.
A tese de que José Marrocos
utilizou-se de efeitos químicos na feitura do sangue das hóstias veio de ser
sustentada pelo sacerdote no decorrer de todo o seu trabalho, do qual passamos
a citar único e longo fragmento: "É historicamente certo que, ainda antes
da eclosão do embuste, teria sido revelado ao Padre Cícero (segundo posterior
declaração sua em depoimento) o advento de uma NOVA Redenção, de que ele seria
o precursor e Juazeiro, o cenário, no qual Jesus Cristo verteria seu precioso
sangue, que correria visivelmente de seu coração humano e visível, através das
Sagradas Espécies.
"Essa doutrina saiu da
cabeça do "teólogo" José Marrocos, tendo-se em consideração que foi
ele o cérebro do Padre Cícero na questão do embuste, com Floro Bartolomeu, no
campo político. Foi no momento do delírio religioso do sacerdote que José
Marrocos entrou em cena, solertemente associado a Maria de Araújo, dando ao
levita a impressão de que a doutrina se objetivara, da qual os MILAGRES eram o
testemunho.
"José Marrocos teria
tido em vista a projeção social do Padre Cícero e Juazeiro e, dentro dessa
paisagem, o seu próprio destaque. Outros acham que ele agira inspirado no jansenismo
de que teria sido inquinado. Ou ainda pelo ressentimento que lhe ficara, da
saída forçada do Seminário. Achava oportunidade para desforrar-se da Autoridade
Eclesiástica. Julgo que o inspiraram os três motivos, com a prevalença do
primeiro".
Ouvimos assim o Pe. Gomes
sobre a matéria. Não se utilizou de meios tons; adotou verbo forte e
contundente; cabendo-nos elucidar em nossas consciências as derivações
necessárias à formação de juízo isento.
Sabe-se da carência humana
de referências divinas e esses complementos reclama de fé, sobretudo da fé
simples. No encalço de suplementação antropológica sobre tais assuntos,
requeiro a licença de citar mais um autor, Edmund Leach, quando nos afirma: "A
religião está voltada, em toda parte, para a preocupação com o primordial, a
antinomia entre a vida e a morte, procurando negar o vínculo binário entre as
duas palavras. Isso é feito por meio da criação da ideia mística de "outro
mundo", um mundo dos mortos onde a vida é perpétua. Os atributos desse
outro mundo são necessariamente aqueles que não são deste mundo; a imperfeição
daqui é compensada com a perfeição de lá. Mas essa ordenação lógica das ideias
traz uma consequência desconcertante: Deus passa a pertencer ao outro mundo. O
"problema" central da religião consiste, portanto, em restaurar
alguma espécie de ponte entre o Homem e Deus.
"Esse padrão está
incorporado à estrutura de qualquer sistema místico. O mito primeiro discrimina
entre os deuses e os homens para depois ocupar-se com as relações e os
intermediários que ligam os homens aos deuses, (...)."
OUTRAS NOTÍCIAS
Agora que ficou na saudade
nosso plano de escrever menos e de citar menos ainda, mesmo assim somos
obrigados a prosseguir por mais um turno, pedido paciência aos que nos
acompanharam. Queiram, pois, confiar que principiamos soldar as derradeiras
peças deste quebra-cabeças, a rejuntar os claros e querer nos despedir. E
agradecermos pela honrosa companhia.
Se não dissemos antes, eis o
momento de fazê-lo: O Pe. Gomes amou o Crato como a um verdadeiro filho. Vimos
que aqui viveu longos anos da existência, escreveu sua história e até, queremos
acrescentar, participou da criação das armas do Município, sendo autor da
legenda LABORE que nelas se insere, desde julho de 1953.
Ao Crato dedicou um dos seus
livros, A CIDADE DE FREI CARLOS, onde encerra, com riqueza de detalhes, as
notas a propósito de sua fundação, seus primeiros habitantes e colonizadores
brancos. "A notícia mais antiga, até agora revelada, referente à Missão do
Miranda, sua Igreja e frei Carlos, traz a data de 30 de julho de 1741. É o
registro dum batizado num livro de registro de Batizado e Casamento, o qual se
estende de 1741 a 1783 e pertence ao arquivo da paróquia do Icó, a cuja
jurisdição esteve subordinado o Cariri até 1748", ali afirma.
Variados e importantes
enfoques resultaram do cuidado desse sacerdote na recomposição da história
cratense, antecipando-se ao desgaste das eras e fornecendo-nos estrutura ao
conhecimento do passado. Nessa empreitada, teve a coadjuvá-lo os demais
historiógrafos reunidos sob a bandeira do Instituto Cultural do Cariri.
De caráter altivo,
brilhante, sempre pode exercer ascendência sobre aqueles que o tiveram como
mestre. Sua posição quanto aos milagres de Juazeiro granjearam-lhe simpatias
entre os cratenses e reações adversas da parte dos juazeirenses, vista a rivalidade
que por vezes ainda se manifesta, originária dos tempos de antes, das lutas de
1914, por exemplo.
Em 1964, a chamada Revolução
de Março nele provocou sentimentos contrários aos militares, o que entretanto
não veio a expressar de modo aberto por meio da imprensa, e só confirmáveis
pelos que desfrutaram de sua proximidade. Nunca negava antipatia à influência
estrangeira na política brasileira, propugnando pela formação de uma alma
nacional. A época, essa onda de desnaturação da nossa cultura iniciava o seu
ataque avassalador, vindo depois a dominar por inteiro os meios de comunicação
de massa, como ora se constata, restando-nos quase nenhuma alternativa de
vitória. Definição sua, referindo-se à Coca-Cola, símbolo do capitalismo
americano espalhado pelo mundo, pode bem corroborar o que dissemos: Esta bebida é jurema
adoçada, bem conhecida dos antigos.
CONCLUSÃO
Reconhecemos um certo
exagero de transcrições, sem que isto demonstre arrependimento tardio, por que
esse foi o método mais oportuno para abordarmos o tema, dando-lhe sabor
peculiar e preservando valiosos trunfos. Por vezes sentimo-nos quais
caminhantes solitários, neste mundo de tantos livros e tão poucos leitores.
Quisemos desta maneira noticiar o máximo do que escondem as bibliotecas e suas
vastidões abandonadas.
Enfim, vale ainda dizer que
o Pe. Antônio Gomes de Araújo mereceu do Prof. Figueirêdo Filho os mais
variados adjetivos: "professor que atuou, com segurança, no meio de seus
alunos. Suas aulas foram sempre vivas, cheias, deixaram impressão imorredoura a
todos. Em cada discípulo, constituiu um amigo que nunca o esquece, mesmo que
resida em terras longínquas ou ocupe posição de relevo. Sua cadeira predileta
foi História e é dos mais competentes pesquisadores de nosso passado, em terras
nordestinas. Seu nome atravessou fronteiras".
"Homem de trato social
esmerado, sempre que um lar é atingido pela dor, é o primeiro a levar-lhe o
bálsamo de uma palavra amiga.
"Sobressai-se no trato
pessoal, pela conversa franca e fluente, com a máxima tolerância em assuntos de
natureza política ou religiosa, de sua íntegra formação eclesiástica".
"Pe. Gomes é dos
maiores pesquisadores de arquivos, para elucidar os fatos históricos do Cariri.
Ajudou o emérito historiador Irineu Pinheiro em "Efemérides" e é
divulgador da história regional.
"É dos cratenses
adotivos mais amantes de nossa terra. Crato deve-lhe bastante, em todos os
campos da inteligência, na história, no jornalismo e no magistério. É ele
cratense por direito natural de conquista, merecendo a gratidão unânime das
gerações presentes e futuras".
Estas palavras se efetivaram
na prática, por intermédio da Resolução n° 2/68, de 30 de abril de 1968, da
Câmara Municipal, quando foi agraciado com o título de cidadania da terra que
tanto venerou.
Em 29 de abril de 1975,
atravessando problemas de saúde, voltou a Brejo Santo, seu natural, onde
recebeu, em 01 de maio de 1977, antigos companheiros do ICC, para missa e
sessão solene comemorativa de seus cinquenta anos de ordenação.
E no seio dos familiares, a
26 de janeiro de 1989, da mesma cidade onde nascera, o Pe. Gomes retorna aos
páramos eternos.
Em 11 de junho do ano
seguinte, teve seu nome escolhido para uma das avenidas do Crato, com início no
final da rua Monsenhor Rocha e término no início da avenida Raimundo Pires
Maia, ligando o Sossego ao Parque Floresta, conforme Projeto-de-Lei Municipal
n° 1.409/90.
14.08.93.
- ARAÚJO, Antônio Gomes de - A CIDADE DE FREI CARLOS, Faculdade de Filosofia do Crato, Coleção Estudos e Pesquisas, Crato, 1971.
- ARAÚJO, Antônio Gomes de - APOSTOLADO DO EMBUSTE, Revista Itaytera n° 2, Instituo Cultural do Cariri, Crato, 1976.
- ARAÚJO, Antônio Gomes de - MITOS E REALIDADES, Revista Itaytera n ° 4, Instituto Cultural do Cariri, Crato, 1958.
- ARAÚJO, Maria do Carmo R. - A PARTICIPAÇÃO DO CEARÁ NA CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR, em HISTÓRIA CEARÁ, coordenação de Simone de Souza, Universidade Federal do Ceará/ Fundação Demócrito Rocha Stylus Comunicações, Fortaleza, 1989.
- BARROS, Luitigarde Oliveira Cavalcanti - O MOVIMENTO RELIGIOSO DE JUAZEIRO DO NORTE/ PADRE CÍCERO E O FENÔMENO RELIGIOSO DO CALDEIRÃO, em HISTÓRIA DO CEARÁ, acima referida.
- BURNES, Edward Mcnall, Robert E. Lerner e Standish Meacham - A HISTÓRIA DA CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL: DO HOMEM DAS CAVERNAS AS NAVES ESPECIAIS, 30° Edição, Editora Globo, Rio de Janeiro, 1988.
- CAVA, Ralph Della - MILAGRES DE JOASEIRO, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977.
- COMBLIN, José - PADRE CÍCERO DE JOASEIRO, Coleção HOMENS E MULHERES DO NORDESTE, Série OS RELIGIOSOS, Edições Paulinas, S. Paulo, 1991.
- FIGUEIREDO FILHO, José Alves de - PADRE ANTÔNIO GOMES DE ARAÚJO, Revista Itaytera n° 20, Instituto Cultural do Cariri, Crato, 1976.
- LEACH, Edmund - ANTROPOLOGIA, Editora Ática, S. Paulo, 1983.
- MACEDO, Joaryvar - Prefácio de UM CIVILIZADOR DO CARIRI E OUTROS ESTUDOS, Faculdade de Filosofia do Crato, Coleção Estudos e Pesquisas, Crato, 1980.
- MACEDO, Nertan - O PADRE E ABEATA, 2ª Edição, Editora Renes/ Instituto Nacional do Livro, MEC, Rio de Janeiro/Brasília, 1981.
- NOBRE, Geraldo - A REVOLUÇÃO DE 1817 NO CEARÁ, em HISTÓRIA DO CEARÁ, acima referida.
- SOUSA, José Newton Alves de - CONTRIBUIÇÃO DO CARIRI CEARENSE À HISTORIOGRAFIA DO NORDESTE, Revista Itaytera n° 15, Instituto Cultural do Cariri, Crato, 1971.
- STUDART FILHO, Carlos - O PADRE GOMES DE ARAÚJO E "A REVOLUÇÃO DE 1817 NO CEARÁ", Tipografia Minerva, Fortaleza, 1962.
Tese de José Américo Monteiro Lacerda para a revista Itaytera, n° 39, Instituto Cultural do Cariri, Crato, 1995.
Fonte Bibliográfica:
- ARAÚJO, Antônio Gomes de - A CIDADE DE FREI CARLOS, Faculdade de Filosofia do Crato, Coleção Estudos e Pesquisas, Crato, 1971.
- ARAÚJO, Antônio Gomes de - APOSTOLADO DO EMBUSTE, Revista Itaytera n° 2, Instituo Cultural do Cariri, Crato, 1976.
- ARAÚJO, Antônio Gomes de - MITOS E REALIDADES, Revista Itaytera n ° 4, Instituto Cultural do Cariri, Crato, 1958.
- ARAÚJO, Maria do Carmo R. - A PARTICIPAÇÃO DO CEARÁ NA CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR, em HISTÓRIA CEARÁ, coordenação de Simone de Souza, Universidade Federal do Ceará/ Fundação Demócrito Rocha Stylus Comunicações, Fortaleza, 1989.
- BARROS, Luitigarde Oliveira Cavalcanti - O MOVIMENTO RELIGIOSO DE JUAZEIRO DO NORTE/ PADRE CÍCERO E O FENÔMENO RELIGIOSO DO CALDEIRÃO, em HISTÓRIA DO CEARÁ, acima referida.
- BURNES, Edward Mcnall, Robert E. Lerner e Standish Meacham - A HISTÓRIA DA CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL: DO HOMEM DAS CAVERNAS AS NAVES ESPECIAIS, 30° Edição, Editora Globo, Rio de Janeiro, 1988.
- CAVA, Ralph Della - MILAGRES DE JOASEIRO, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977.
- COMBLIN, José - PADRE CÍCERO DE JOASEIRO, Coleção HOMENS E MULHERES DO NORDESTE, Série OS RELIGIOSOS, Edições Paulinas, S. Paulo, 1991.
- FIGUEIREDO FILHO, José Alves de - PADRE ANTÔNIO GOMES DE ARAÚJO, Revista Itaytera n° 20, Instituto Cultural do Cariri, Crato, 1976.
- LEACH, Edmund - ANTROPOLOGIA, Editora Ática, S. Paulo, 1983.
- MACEDO, Joaryvar - Prefácio de UM CIVILIZADOR DO CARIRI E OUTROS ESTUDOS, Faculdade de Filosofia do Crato, Coleção Estudos e Pesquisas, Crato, 1980.
- MACEDO, Nertan - O PADRE E ABEATA, 2ª Edição, Editora Renes/ Instituto Nacional do Livro, MEC, Rio de Janeiro/Brasília, 1981.
- NOBRE, Geraldo - A REVOLUÇÃO DE 1817 NO CEARÁ, em HISTÓRIA DO CEARÁ, acima referida.
- SOUSA, José Newton Alves de - CONTRIBUIÇÃO DO CARIRI CEARENSE À HISTORIOGRAFIA DO NORDESTE, Revista Itaytera n° 15, Instituto Cultural do Cariri, Crato, 1971.
- STUDART FILHO, Carlos - O PADRE GOMES DE ARAÚJO E "A REVOLUÇÃO DE 1817 NO CEARÁ", Tipografia Minerva, Fortaleza, 1962.
O Historiador Padre Antônio Gomes de Araújo foi um dos fundadores do Instituto Cultural do Cariri. |
“Um certo Padre Gomes”
De Everardo Norões
Dez horas da manhã.
Na sala de aula,
duas altas janelas cortam
o claro dos céus em
pedaços.
O professor profere
a chamada.
O verbo é
‘proferir’; ele nunca chama: ordena.
Ele é padre, mas
nada tem a ver com seus pares.
Basta ver o corte
da batina, a faixa à cintura
que mais parece um
obi de samurai.
Postura de quem
está sempre à espreita,
aguarda o ataque.
Pronuncia os nomes,
não os repete; olha a cara de cada um,
baixa a vista para
o livro de anotações, escreve.
O que contam esses
registros?
Depois, se não
aprova o nominado,
ele o dispensa
antes do início da classe.
(Comenta-se que
presa à faixa não há uma katana,
o sabre japonês,
mas um Smith&Wesson .38 duplo.
Única concessão que
faz ao império do Tio Sam.)
A aula começa.
O professor comenta
a diferença entre os homens do interior
e os que ficaram
pelos litorais,
a arranharem a
terra como caranguejos,
dixit Frei Vicente
do Salvador, ou Vicente Rodrigues Palha,
nome laico do
jesuíta baiano que descreveu a vida na Colônia.
A linha de
pensamento do mestre se insinua
pelos meandros do
rio São Francisco.
É regida pelas
observações do mais brilhante historiador
de seu tempo,
Capistrano de Abreu, ateu e, para seu desgosto,
pai de uma freira
que se refugiou no claustro
e fez voto de
silêncio.
Voltemos ao Padre, seu outro lado,
seu silêncio
martirizado no quarto de estudos,
onde dormir é
privilégio.
Aí doma seus
fantasmas, suas letras.
Não tem com quem
conversar, aprofundar argumentos,
buscar o verme que
contamina o miolo de seu fruto,
o fruto vermelho da
História.
Busca nos
alfarrábios, cruza garatujas de batistérios.
E sempre Nascimento
e Morte de permeio,
desmontados em
árvores desenhadas em páginas coladas,
para chegar ao mais
idiota descendente
de um coronel
qualquer da Guarda Nacional.
O Álbvm do
Seminário do Crato, de 1925
– álbvm com ‘v’,
para imitar o latim da Santa Igreja –,
registra o aluno na
página 202; o clérigo, na 207.
A fotografia da
página 189, carcomida pela traça, revela:
batina, barrete,
mas sem a capa romana
que o acompanharia
durante tantos anos,
tremulante e negra
sob o sol dos Cariris.
Pois assim reza o
artigo 12
do capítulo III do
Regulamento do Seminário Maior:
“Uma modéstia sem
afetação e um porte digno
resaltem do seu
todo, mormente nos actos religiosos
e quando estiverem
recebendo instrucção” (sic).
É necessário lupa para recompor
feições e formas.
Segundo da segunda
fila, da direita para a esquerda.
A cabeça encoberta
inclinada à direita;
deixa-se ver o
relógio de algibeira,
quem sabe um Patek
Philippe.
O rosto é magro; o
nariz, aquilino, mouro;
as orelhas não se
deixam passar despercebidas.
Não mira a objetiva
do fotógrafo.
É uma visão para o
largo,
um ar que o
distingue da bonomia do grupo.
Tem um ar triste,
inquieto.
Um homem sozinho
atravessa a cidade:
batina negra, capa
romana, faixa à cintura.
Segue o trajeto que
vai da igreja da Sé ao Ginásio.
Quantas vezes terá
feito esse percurso?
Saúda Tandô,
sentado no meio-fio da praça.
“Em que pensa esse
padre, com jeito de homem”,
se pergunta o anão?
Aqui tudo é vigiado.
A cada janela há um
olho à espreita.
O padre caminha sem
prestar atenção a quem passa,
nem atentar para
quem se furta por detrás das gelosias.
Anda rápido para
dar tempo à chamada do refeitório e,
logo depois,
recomeçar reflexões e leituras.
Abrirá a porta de
vidro da estante de cedro
com a chave
escondida dentro do sapato, enrolada na meia.
Lembrança do
regulamento, de quando era regente:
“Só poderão fazer
leituras extra-programma mediante prévia
autorização do
Padre Prefeito” (sic).
Passa o Padre Gomes
e Tandô, o anão, se pergunta:
Em que diabo está
pensando esse homem?”
Somente hoje é
possível compreender
o porquê daqueles
passos apressados,
daquela inquietação
permanente,
de sua genialidade
e equívocos.
A fotografia:
não é mais
necessário lupa para recompor as feições.
Não mira a objetiva
do fotógrafo.
É uma visão para o
largo,
um ar que o
distingue do resto.
Tem um ar triste,
inquieto.
Pensa num mundo
mais largo, sem cadeias,
distante do jugo
das genealogias,
longe de um sol que
é o mesmo sol de todos os dias,
segundo Machado de
Assis,
onde nada existe
que seja novo,
onde tudo cansa,
tudo exaure...
O Brejo é Isso!
Bruno Yacub Sampaio Cabral
“Um certo Padre Gomes”
De Everardo Norões
Dez horas da manhã.
Na sala de aula,
duas altas janelas cortam
o claro dos céus em
pedaços.
O professor profere
a chamada.
O verbo é
‘proferir’; ele nunca chama: ordena.
Ele é padre, mas
nada tem a ver com seus pares.
Basta ver o corte
da batina, a faixa à cintura
que mais parece um
obi de samurai.
Postura de quem
está sempre à espreita,
aguarda o ataque.
Pronuncia os nomes,
não os repete; olha a cara de cada um,
baixa a vista para
o livro de anotações, escreve.
O que contam esses
registros?
Depois, se não
aprova o nominado,
ele o dispensa
antes do início da classe.
(Comenta-se que presa à faixa não há uma katana,
o sabre japonês,
mas um Smith&Wesson .38 duplo.
Única concessão que
faz ao império do Tio Sam.)
A aula começa.
O professor comenta
a diferença entre os homens do interior
e os que ficaram
pelos litorais,
a arranharem a
terra como caranguejos,
dixit Frei Vicente
do Salvador, ou Vicente Rodrigues Palha,
nome laico do
jesuíta baiano que descreveu a vida na Colônia.
A linha de
pensamento do mestre se insinua
pelos meandros do
rio São Francisco.
É regida pelas
observações do mais brilhante historiador
de seu tempo,
Capistrano de Abreu, ateu e, para seu desgosto,
pai de uma freira
que se refugiou no claustro
e fez voto de
silêncio.
Voltemos ao Padre, seu outro lado,
seu silêncio
martirizado no quarto de estudos,
onde dormir é
privilégio.
Aí doma seus
fantasmas, suas letras.
Não tem com quem
conversar, aprofundar argumentos,
buscar o verme que
contamina o miolo de seu fruto,
o fruto vermelho da
História.
Busca nos
alfarrábios, cruza garatujas de batistérios.
E sempre Nascimento
e Morte de permeio,
desmontados em
árvores desenhadas em páginas coladas,
para chegar ao mais
idiota descendente
de um coronel
qualquer da Guarda Nacional.
O Álbvm do Seminário do Crato, de 1925
– álbvm com ‘v’,
para imitar o latim da Santa Igreja –,
registra o aluno na
página 202; o clérigo, na 207.
A fotografia da
página 189, carcomida pela traça, revela:
batina, barrete,
mas sem a capa romana
que o acompanharia
durante tantos anos,
tremulante e negra
sob o sol dos Cariris.
Pois assim reza o
artigo 12
do capítulo III do
Regulamento do Seminário Maior:
“Uma modéstia sem
afetação e um porte digno
resaltem do seu
todo, mormente nos actos religiosos
e quando estiverem
recebendo instrucção” (sic).
É necessário lupa para recompor
feições e formas.
Segundo da segunda
fila, da direita para a esquerda.
A cabeça encoberta
inclinada à direita;
deixa-se ver o
relógio de algibeira,
quem sabe um Patek
Philippe.
O rosto é magro; o
nariz, aquilino, mouro;
as orelhas não se
deixam passar despercebidas.
Não mira a objetiva
do fotógrafo.
É uma visão para o
largo,
um ar que o
distingue da bonomia do grupo.
Tem um ar triste,
inquieto.
Um homem sozinho atravessa a cidade:
batina negra, capa
romana, faixa à cintura.
Segue o trajeto que
vai da igreja da Sé ao Ginásio.
Quantas vezes terá
feito esse percurso?
Saúda Tandô,
sentado no meio-fio da praça.
“Em que pensa esse
padre, com jeito de homem”,
se pergunta o anão?
Aqui tudo é vigiado.
A cada janela há um
olho à espreita.
O padre caminha sem
prestar atenção a quem passa,
nem atentar para
quem se furta por detrás das gelosias.
Anda rápido para
dar tempo à chamada do refeitório e,
logo depois,
recomeçar reflexões e leituras.
Abrirá a porta de
vidro da estante de cedro
com a chave
escondida dentro do sapato, enrolada na meia.
Lembrança do
regulamento, de quando era regente:
“Só poderão fazer
leituras extra-programma mediante prévia
autorização do
Padre Prefeito” (sic).
Passa o Padre Gomes e Tandô, o anão, se pergunta:
Em que diabo está
pensando esse homem?”
Somente hoje é
possível compreender
o porquê daqueles
passos apressados,
daquela inquietação
permanente,
de sua genialidade
e equívocos.
A fotografia:
não é mais
necessário lupa para recompor as feições.
Não mira a objetiva
do fotógrafo.
É uma visão para o
largo,
um ar que o
distingue do resto.
Tem um ar triste,
inquieto.
Pensa num mundo
mais largo, sem cadeias,
distante do jugo
das genealogias,
longe de um sol que
é o mesmo sol de todos os dias,
segundo Machado de
Assis,
onde nada existe
que seja novo,
onde tudo cansa,
tudo exaure...
O Brejo é Isso!
Bruno Yacub Sampaio Cabral
Excelente artigo, como todos do blog! Parabéns!
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