A Munganga Promoção Cultural

A MUNGANGA PROMOÇÃO CULTURAL: O Brejo é Isso!

segunda-feira, 27 de maio de 2019

O PE. ANTÔNIO GOMES E A HISTORIOGRAFIA DO CARIRI



Tese de José Américo Monteiro Lacerda para a revista Itaytera, n° 39, de 1995.

Padre Antônio Gomes de Araújo:
Nasceu em 06 de janeiro de 1900;
Ordenou-se em 17 de abril de 1927;
Faleceu em 26 de janeiro de 1989.


    "Aqueles que escrevem a história e aqueles que a estudam devem procurar ver de que modo um acontecimento conduziu a outro, e como o passado, em sua totalidade, é um prólogo do presente, mas devem também apreciar o passado em seus próprios termos, examinando-o, tanto quanto possível, com os olhos e o espírito daqueles que o viveram, "Edward Mcnall Burnes e outros (HISTORIA DA CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL).

    Os registros históricos estruturam as conclusões e atitudes posteriores, quais estágios de foguetes no trabalho de conduzirem naves espaciais a céus mais avançados. Gerações a conduzirem gerações, enquanto que se aperfeiçoam os homens na faina de novas descobertas científicas, refinamento tecnológico, em prática pelo engenho soberano da Política, por vezes carecendo de progressos compatíveis noutras áreas; hoje sobretudo na área da Ética.

    Muito se tem que aprender dos tempos passados. A grande m estra da História, segundo Heródoto, fornece seus ensinamentos nas páginas carcomidas dos intérpretes, por vezes esquecidos. Na era da velocidade eletrônica, tempo de facilidade e superfície, os registros se multiplicam por milhões, o que não corresponde às chances de se acompanhar tal profusão de recursos, vistos aspectos importantes da elitização do conhecimento nas mãos de uma parte mínima da Humanidade. Tanto esforço arcaico a resultar em pouco ou quase nada, qual se andássemos para trás, numa regressão perversa de valores, do "homem lobo de si mesmo", praticando o aprendizado das horas em sentido contrário. Quem quer pode olhar de frente e ver o quanto se destrói nas oportunidades do futuro. Armas como que perfeitas, para matar. Destruição continuada das reservas naturais. Especialização dos métodos de reter o capital, por parte de minorias privilegiadas. Técnicas de manipulação das multidões sem nexo. Industrialização dirigida ao consumo apenas imediato de seres vegetais. Empacotamento de um mundo esfumaçado de cidades enormes, viveiros gigantes, apáticos, semelhantes a granjas sanitárias, aleijões exóticos, apenas equívocos. E se dispor de tanto material crítico acumulado para compor o quadro cinzento em que se transformou a História.

HISTÓRIA: FAZER OU ESCREVER

    Independente de tudo isso, dos ruídos da engrenagem pensa, a cena deve continuar, pois aqui nos achamos, equações ainda imperfeitas no imenso labirinto da perfeição. Enquanto líderes assumem a profissão da miséria de explorar o chão social em favor de si, em detrimento da sociedade, ou tro s conseguem vencer a fraqueza das facilidades e rompem a bolsa de um novo tempo.
No entanto permanece a grande alternativa de cada um: fazer ou escrever a história. A dicotomia universal de se ser teórico ou prático no que concerne aos papéis existenciais.

    Os sonhos de muito raro vêm a se concretizar, vistas limitações regulamentares, fraquezas de conjuntura. A família põe e Moloc dispõe, parodiando o conceito popular de destino. A macro estrutura encurrala os componentes, faíscas dispersas, aguardando-se genialidade daqueles que possam vir a comandar os botões. As alegativas, sobretudo nos países subdesenvolvidos, gravitam em torno de amarrações antecedentes, conchavos, em torno de compromissos corporacionais que os impedem de agir a posteriori, prazo esse preenchido pela produção intelectual das universidades, de uma juventude inerte, comprimida, discriminada.

    Cremos haver anteposto nosso conceito das fragilidades dessa Ciência, conduzida de modo magistral pelos poderosos a favor de seus próprios desígnios, largando-nos cascas e nós, vencidos que seríamos, não fosse a certeza das determinações superiores de proveniência nem um pouco duvidosa, numa interpretação cósmica milenária, acima das em presas religiosas e dos sicários de plantão, nos gabinetes.

A ESCOLA DO CARIRI


    Esta região interiorana do Ceará, denominada Cariri, estabelecida em conseqüência de microclima peculiar, no lado verde da Chapada do Araripe, teve em Crato, por mais de um século, seu pólo de atração. Nesta cidade floresceu ambiente cultural paralelo a época produtiva intensa, à sombra do cultivo da cana-de açúcar, do algodão, da mandioca, fruteiras dos brejos, se não quisermos considerar também a pecuária intensiva à volta das bagaceiras dos engenhos e um comércio promissor, dada a afluência circunstante de outros municípios, tanto do estado, quanto dos fronteiriços de Pernambuco, Paraíba e Piauí.

    O Seminário São José viveu período áureo, seguido pelos colégios Diocesano e Santa Teresa, todos localizados em Crato, futuras sementes das primeiras faculdades e posterior Universidade Regional do Cariri, a se efetivar na segunda metade da década de 80.

    Como resultante, nesta parte frutificaram estudiosos, professores, magistrados, jornalistas, militares, médicos, advogados, autodidatas, numa produção de época que por si só fez história. Reuniram-se, publicaram, fundaram grêmio de debates, o Instituto Cultural do Cariri (18 de outubro de 1953) e podem ser vistos, desde esta quadra de tempo, como a Escola Histórica do Cariri, da qual participaram como principais elementos: Dr. lrineu Pinheiro, Prof.José Alves de Figueiredo Filho, Pe .Antônio Gomes de Araújo, Gal. Raimundo Pinheiro Teles, Cel. Otacílio Anselmo, Dr.Raimundo de Oliveira Borges, Prof. Joaryvar Macedo (Joaquim Lobo de Macedo), João Lindemberg de Aquino, Prof.José Newton Alves de Sousa, F.S.Nascimento e Nertan Macedo.

    Muitas publicações marcaram a atuação do grupo, resultando em substrato para a nítida compreensão da vida nesta parte do mundo, dentro de ótica efetiva da melhor qualidade.

    Uma revista consubstanciou o traço que uniu tantas e raras presenças, a Itaytera, ora (1993) em seu número 37, lançada que foi em 1955, tendo no jornalista João Lindemberg de Aquino o seu continuador, por décadas inteiras.

SUA VIDA

    Antônio Gomes de Araújo nasceu em Brejo Santo, à época vila, a 06 de janeiro de 1900, filho de José Nicodemos da Silva e Maria Gomes de Araújo Lima, de quem herdou os dois sobrenomes. No mesmo município iniciou seus estudos e permaneceu até 1918. Do ano seguinte a 1921 cursou o Seminário Menor do Seminário Arquiepiscopal do Ceará (Fortaleza), vindo fazer, em 1922, o Curso Superior do Seminário Maior no Seminário Episcopal do Crato, presbiterando-se em 17 de abril de 1927.

    De 1927 a 1932 lecionou História Eclesiástica e Filosofia nos Cursos Secundário e Superior do Seminário do Crato. De 1929 a 1930, História, na Escola da Associação dos Empregados no Comércio, e de 1930 a 1960, História, Latim e Português, no Ginásio do Crato, depois Colégio Diocesano, quando adquiriu aposentadoria por tempo de serviço.

    Exerceu as funções de capelão da Concentração dos Flagelados de Buriti (Crato), e de prefeito do internato e externato do Ginásio do Crato, sendo nomeado em 1935 inspetor do Ensino Normal do Estado junto à Escola Normal Santa Teresa de Jesus, colégio do mesmo nome, cargo que exerceu por mais de três décadas. De 1941 a 1962 foi também capelão do Cemitério, em Crato.

    Consideramos ainda que desempenhou os papéis de sócio correspondente do Instituto Histórico do Ceará, sócio correspondente da Academia Cearense de Letras, vice-presidente do Instituto Cultural do Cariri por quase vinte anos, desde a sua primeira diretoria, onde assumiu a presidência interina de 21 de maio a 11 de dezembro de 1954, e sócio-correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, além de haver ministrado História Antiga e Medieval na Faculdade de Filosofia do Crato, agregada à Universidade Federal do Ceará.

    Estas foram as principais referências cronológicas que balizaram a vida do Pe. Gomes, conforme estudo realizado pelo Prof.Figueiredo Filho, em artigo da revista Itaytera n° 20, ano de 1976.

A BIBLIOGRAFIA

    Do mesmo artigo do Prof. Figueirêdo, transcrevem os abaixo relação completa das obras escritas pelo Pe. Antônio Gomes de Araújo: 

- DISCURSO DE PARANINFO, 1964; 
- FUNDADOR-MOR DA METRÓPOLE MISSÃO-VELHENSE, 1949/1950;
- PRIMEIRO VIGÁRIO DO CRATO, 1950; 
- CONCURSO DA BAHIA NA FORMAÇÃO DA GENS CARIRIENSE, 1950;
 - NATURALIDADE DE BÁRBARA DE ALENCAR (A HEROÍNA DO CRATO), 1951;
- OS ARNAUD NO CARIRI, 1953;
- O CARIRI: SESMEIROS E POVOADORES, 1953;
- DO CURRAL AO CiCLO AGRÍCOLA, 1951;
- A CIDADE DE FREI CARLOS; 1950;
- UM CIVILIZADOR DO CARIRI, 1955;
-  CERTIDÕES DE BATISMO DE BÁRBARA DE ALENCAR, 1953;
- A BAHIA NAS RAÍZES DO CARIRI, 1955;
- APOSTOLADO DO EMBUSTE, 1956;
- RAÍZES SERGIPANAS...(SÉCULO XVIII), 1957;
- PADRE PEDRO RIBEIRO DA SILVA, O FUNDADOR E PRIMEIRO CAPELÃO DE JUAZEIRO DO NORTE, 1958;
- O MAGNÍFICO REITOR DA UNIVERSIDADE DO CEARÁ, ASCENDENTES E COLATERAIS, 1959;
- MITOS E REALIDADES. O MITO DE FREI FIDELIS...,1961;
- EM DEFESA DA MEMÓRIA DE BÁRBARA DE ALENCAR,1961;
- À MARGEM DE "A MARGEM DA HISTORIA DO CEARA", DE GUSTAVO BARROSO, 1962;
-1817 NO CARIRI, 1962;
- A HEROÍNA BÁRBARA DE ALENCAR, 1963/1964;
- A COMUNIDADE ORIGINÁRIA. O FUNDADOR HISTÓRICO (REFERÊNCIA À MISSÃO DO MIRANDA), 1964;
- A REVOLUÇÃO DOS ALENCAR (1817), 1964 (inédito);
- ALENCAR NOS IDOS DE 17 E 24 E OUTRAS NOTAS, 1965/1966;
- O AUTOR DE IRACEMA; CARIRIENSE DE ORIGEM, 1965;
- ALDEAMENTO DA MISSÃO DO MIRANDA E REVELAÇÃO DE SUA ARQUEOLOGIA, 1965; 
- CONSELHO DE ORDENAÇÕES CONTRA ACESSO DO PADRE CÍCERO AS SAGRADAS ORDENS E SUA PERMANÊNCIA NO SEMINÁRIO, 1965 (inédito);
- CIDADE DE FREI CARLOS, 1973; 
- POVOAMENTO DO CARIRI, 1974.

O PROFESSOR

    Ainda no Seminário, o Pe. Gomes externalizou sua tendência para ensinar História. Desempenhou o magistério quase com dedicação exclusiva, marcando sua época com personalidade forte de quem viveu as contradições doutrinárias do integralismo de Plínio Salgado, simpatizante que foi de suas idéias, ao lado de vários outros membros do clero cratense da década de 40.

    Seus ex-alunos, uma geração inteira que estudou no Colégio Diocesano e as primeiras turmas da Faculdade de Filosofia, podem, sem maiores esforços, recordar de sua aparência física, tipo espigado, magro, meio calvo, rosto longo, queixo apontado, sempre de batina, verbo fluente, satírico, autoritário, acessível, bem humorado, por vezes surpreendente em suas atitudes para com a turma.
Numa ocasião, no Colégio Diocesano, ao se deparar com apenas três alunos em sala, enquanto os demais faziam greve, ele deu presença aos que estavam fora, excluindo os que compareciam, para punir a falta de solidariedade.

    Dentre seus livros, dos quais uma parte ainda se conserva, numa sala especial (Núcleo de Estudos Históricos Pe. Antônio Gomes de Araújo) que lhe foi dedicada no Instituto Ecológico e Cultural Martins Filho, da Universidade Regional do Cariri, em Crato, fomos encontrar 31 tomos de apontamentos, os mais variados, escritos pelo próprio punho conforme áreas de estudo, desde a Revolução Francesa, idéias libertárias na América, Nassau e sua administração no Brasil, até marçonaria, comunismo, a doutrina de Rousseau, domínio holandês no Nordeste brasileiro.

    Esse rico material fica à disposição para pesquisa, levando-se em conta que o instituto dispõe de um índice organizado por tom o, do qual ainda anotamos mais alguns títulos, em meio a muitos outros, que aqui repassam os para efeito de conhecimento das áreas que lhe interessavam. São eles: a civilização na Idade Média, o atraso do Brasil frente aos Estados.

    Unidos, herança dos povos históricos do Oriente, principais causas das civilizações, evolução da história das primeiras raças, cultos dos mortos, imperialismo, a índia e os vedas, inflação, ameríndios no Brasil, influências indígenas, os judeus e o tráfico negro, Independência do Brasil, expulsão dos jesuítas, o jesuíta e o território nacional, Confederação do Equador (republicana e separatista), colonização, mineração, o açúcar, o gado, impérios, guerras, Caxias, Abolição e República.

NO INSTITUTO CULTURAL DO CARIRI


    Com a institucionalização da pesquisa histórica através deste órgão independente do sistema oficial, muito se preservou dos registros caririenses.

    Setores da nossa história receberam tratamento exclusivo do Pe. Antônio Gomes, que estabeleceu sua produção sobretudo em quatro principais ângulos: as origens caririenses, a participação dos Alencares nas revoluções de 1817 e 1824, as lutas da Independência e personalidades, inclusive eclesiásticas, da história regional, cabendo ao Pe. Cícero e aos acontecimentos juazeirenses um capítulo isolado.

    Sobre as origens caririenses, deteve-se na verificação de documentos cartorários remotos das comarcas de Crato, Brejo Santo, Missão Velha, Milagres, Barbalha e Jardim, visando estabelecer os troncos genealógicos dos antigos colonos, compendiando as primeiras levas da imigração. Cuidou de pinçar a influência da Casa da Torre da Garcia D'Ávila em plagas cearenses; mapeou a fixação das raízes baianas, sergipanas e alagoanas. A conquista das terras. Os índios e as missões catequistas. O povoamento, suas freguesias e fundações. Os primeiros aldeamentos, capelas, sítios, sesmarias, fazendas, bacias. Os prenúncios da cidade de Crato. O Ceará no século XVII. Devassamento do Nordeste, fundamentos econômicos, quadro social, paisagem religiosa, os capuchinhos, criação e organização administrativa de uma vila no Brasil, dentre outros aspectos também por ele considerados em sua obra.

    As revoluções de 1817 e 1824 mereceram-lhe muitas páginas, evidenciando a participação intensa dos Alencares. As personalidades e atuação de Bárbara e seus filhos ganharem trato próprio do historiógrafo, a ponto de provocar reações de outros estudiosos, como do Gal. Carlos Studart Filho, em seu livro O PADRE GOMES DE ARAÚJO E "A REVOLUÇÃO DE 1817 NO CEARÁ", onde observou: "Expondo os fatos de 1817, tal críamos houvessem realmente sucedido, escrevendo sem ódios, nem simpatias e também sem qualquer propósito de aluir reputações ou criar ídolos, havíamos, sem o perceber, nem desejar, irritado um dos donos da história do Cariri, o respeitável Padre Gomes, essa águia do saber histórico que se aninha entre as venerandas arcadas do Instituto Cultural do Cariri. "E mais adiante: "Quanto a pretender, como faz o ilustre Padre Gomes (Pág. 15 obra em consideração), que o "Progresso sigiloso" ou seja, aquilo que ele supõe haver, por motivos secretos, deixado de figurar nos autos da devassa deva prevalecer contra o documento no caso, o term o de prisão de D.Bárbara é derruir os próprios fundamentos da historiografia; é dar a impressão que tresvaria.

    "Na realidade, porém, o Padre Gomes não delira; está em perfeita saúde mental; apenas vê os sucessos de 1817, através das lentes deformadoras de um regionalismo estreito".

    Alguns escritos seus acompanharam o desempenho das tropas brasileiras contra os redutos portugueses do Norte, enaltecendo o papel de José Pereira Filgueiras, que considera o maior soldado da Independência.

    E na quarta vertente de interesses: perfis eclesiásticos ou patriarcas, a par de outras elaborações; reunindo elementos a respeito do Pe. Cícero Romão Batista e os milagres de Juazeiro, publicou na Itaytera n° 2 o artigo APOSTOLADO DO EMBUSTE, onde buscou desfazer a possibilidade dos fatos propalados, desencadeando acirrada polêmica com o Pe. Azarias Sobreira, através da imprensa de Fortaleza, cuja repercussão gerou interferência proibitiva do bispo D. Francisco de Assis Pires, em 15 de julho de 1956.

O PESQUISADOR


    A dedicação de Pe. Gomes às letras se fez especializar no trato histórico dos materiais que reuniu, sempre visando detalhar os fatos descritos numa linguagem de acessível comunicação. Primou pelas referências documentais, persistente no manuseio de tomos em cartórios e paróquias, colhendo depoimentos de coetâneos, avaliando e comparando textos, além de estabelecer suas próprias hipóteses.

    Ninguém melhor do que o Prof. José Newton Alves de Sousa para analisar sua personalidade literária, reafirmando em CONTRIBUIÇÃO DO CARIRI CEARENSE A HISTORIOGRAFIA DO NORDESTE (Itaytera n° 16) palavras que dissera no I Simpósio de História do Nordeste Brasileiro (PADRE GOMES DE ARAÚJO E A PESQUISA HISTÓRICA NO CARIRI): "Espírito inquieto e polêmico, porém, nos princípios, tem, algumas vezes, saído a campo, pela imprensa, em defesa de suas convicções.

    "Não descansa, enquanto não prova o que diz, ou encontra um fato que retifique o que pensa, ou prepondere outro motivo superior.

    "Por ser um homem sem meias palavras, vai direto à verdade, doa em quem doer".

    No mesmo artigo, o Prof. José Newton também testifica: "Jamais adulterou ou desfigurou documento. Jamais leu ou interpretou o que quer que fosse com duplicidade de intenção. Sempre foi aberto aos outros para os informar do que precisam, embora nem todas as vezes os outros lhe tenham sabido ser suficientemente leais.

    "Defendendo um ponto de vista, pode exceder-se em ardores polêmicos, mas sem falsear, sem mentir.

    "Como pesquisador, é invariável o seu proceder de homem o objetivo, pertinaz, buscando, corrigindo, cotejando, confirmando".

    No prefácio de UM CIVILIZADOR DO CARIRI E OUTROS ESTUDOS, localizam os, do Prof. Joaryvar Macedo, as seguintes avaliações: "Espírito criterioso, investigador brilhante e impenitente, animado do mais vivo interesse pelas indagações sobre a descoberta, conquista e povoamento da Região, exercendo, obstinada e pacientemente, a pesquisa, dela partiu, com segurança e equilíbrio, para o magistério da exegese e da crítica, descobrindo verdades, em meio ao vasto material disperso.

    "Mergulhado, com toda a dedicação e com toda a diligência, em fontes primárias que, havia dois séculos, dormiam nos cartórios e arquivos regionais, à espera de um garimpeiro, amiúde examinou livros e registros, outros etc., muitos dos quais fragmentados e quase ilegíveis. Destarte, conseguiu imprimir um rumo diferente aos estudos sobre a formação étnica e social do Vale. Procedeu a inúmeras retificações, pondo luz onde havia obscuridade. A Antônio Bezerra, João Brígido, Gustavo Barroso e a outros historiadores de renome, que escreveram também a respeito do Cariri, pediu a mão à palmatória.

    "Em que pese a implicabilidade do tempo prossegue o Prof. Joaryvar Macedo, que lhe não ensejou a elaboração de todos os resultados colhidos, ao longo de suas andanças pelos caminhos poentos dos alfarrábios, publicou sínteses verticais e resenhas medulares, ora em revistas e jornais, ora sob a forma de plaquetas, propiciando, assim, aos historiadores regionais do presente e do futuro os frutos opimos de suas surpreendentes escavações".

ALENCARISMO

    O zelo do historiógrafo pelos vultos e coisas genuínas levou-o ao culto intenso dos heróis regionais, desde o seminarista José Martiniano Pereira de Alencar, a sua mãe, D. Bárbara de Alencar, e seus irmãos, Tristão Gonçalves Pereira de Alencar e Pe. Carlos José Gonçalves dos Santos, tendo em vista haverem sido os esteios da Revolução de 1817, no Ceará. Nas palavras do Prof. Geraldo Nobre, do Departamento de História da Universidade Estadual do Ceará, no livro HISTÓRIA DO CEARÁ, "recém-chegado de Pernambuco, o seminarista (Martiniano de Alencar) contagiara de entusiasmo à sua família, mas conseguirá apenas a passividade do poderoso Capitão-Mor José Pereira Filgueiras, não obstante o que, na missa dominical de 3 de maio, lera as proclamações do Governo Revolucionário e proclamara a República, à qual, em seguida, fez aderir a Câmara daquela Vila, bem como a do Jardim, onde exercia a maior influência Leonel Pereira de Alencar, irmão de Dona Bárbara. Estas ações contariam com apoio parcial, devido às muitas rivalidades no Cariri, contando os Alencares com as dos Bezerra de Menezes, à frente o Tenente-Coronel miliciano Leandro Bezerra Monteiro, que não ficou de braços cruzados, promovendo, em poucos dias, a restauração, com o apoio do Capitão-Mor Filgueiras, a quem fez ver a temerosidade do compromisso com os rebeldes".

    Mais adiante, noutro texto da mesma coletânea, desta vez de autoria da Profa. Maria do Carmo R. Araújo, do Curso de História da Universidade Federal do Ceará, grifamos, quanto à Revolução de 1824: "A análise da participação do Ceará na Confederação do Equador deve, em princípio, levar em conta dois aspectos: o primeiro refere-se à permanência da capitania sob a jurisdição de Pernambuco por quase um século e meio (de 1656 a 1799). Essa subordinação político-administrativa referendava a subordinação econômica, então existente. De forma que a Carta Régia de 1799 estabelecendo a separação ficou letra morta. O Ceará, sobretudo a região do Cariri, fronteiriça com as terras pernambucanas, continuou a sua prática comercial com Pernambuco.

    "Pelo alvará de 27 de abril de 1803, a capitania cearense passou a receber incentivos para o comércio com o exterior. No entanto, não deixou de haver continuidade nas relações com a capitania vizinha. Recife polarizava as relações comerciais do Ceará como as demais capitanias ao redor, que precisavam do seu porto para o escoamento da sua produção. "O segundo aspecto de acordo com a pesquisadora, está ligado ao domínio político exercido pela família Alencar na região do Cariri. Desde 1817 os Alencar perseguiam o estabelecimento de uma nova ordem na província. Os acontecimentos advindos com a independência projetaram favoravelmente para a cena política, a nível provincial, elementos influentes da zona caririense, cujos interesses econômicos ligavam-se particularmente a Pernambuco. Foram esses elementos que fizeram a Confederação do Equador no Ceará".

    Demoramo-nos em citações no objetivo de fundamentar os motivos que levaram o Pe. Antônio Gomes ao incansável trabalho de preservar ilustres vultos regionais da ação de outros intérpretes, qual o exemplo referido, da parte do Gal. Studart Filho, sem com isto negarmo-lhes o valor, tanto que dele ainda queremos citar o que se segue: "Vencido, não quis, porém, o Padre Gomes render-se à evidência dos fatos expostos. Preferiu conceber apressadamente e dar curso a uma versão interpretativa inteiram ente original para os acontecimentos que antecederam e provocaram o levante caririense de 3 de maio de 1817.

    "Visava tal explicação a reivindicar para José Martiniano o mérito indevido de precursor e fator principal da rebelião republicana de 17 no Ceará, proposição que consideramos das mais audaciosas ultimamente surgidas no campo da nossa historiografia regional. Ela implica, com efeito, em atribuir ao filho de D. Bárbara alheios predicados e, desse modo, fazê-lo aparecer, na crônica brasileira, com uma personalidade ainda maior e mais complexa do que aquela que até agora lhe conhecíamos.

    "Nos fastos da revolução de 17, ele deixaria de ser apenas o seminarista inspirado, vencedor galhardo dos óbices próprios ao ínvio caminho que o conduziu ao adro da matriz do Crato e o levou à glória, para se tornar bem maior do que o Ouvidor Carvalho, em astúcia e prática de manobras solapadoras das instituições monárquicas".

    A título de ilustração, dizemos que uma obra do Pe. Gomes manter-se-á inédita, caso permaneça desaparecida. Trata-se de A REVOLUÇÃO DOS ALENCAR, com mais de duzentas páginas, cujos originais foram entregues, em junho de 1964, ao então Presidente Humberto de Alencar Castelo Branco, quando de sua visita ao Crato, e de que não mais se teve notícia.

A QUESTÃO DE JUAZEIRO

    Este tema merecerá particularização, dada sua importância histórica. Muito efeito provocou à época, inícios da década de 50, agitando a imprensa cearense, sem contudo motivar outra reação além da polêmica sensacionalista, uma vez que os elementos materiais da prova já haviam sido eliminados.

    Ouçamos, por oportuno, algumas opiniões a propósito: Nertan Macedo, em O PADRE E A BEATA: "O milagre aconteceu numa certa manhã, durante a missa, quando o Padre Cícero dava a comunhão aos fiéis. Uma curiboca entanguida para usarmos a expressão dos que se ocuparam do caso -, pálida, nervosa e franzina, aproximou-se da mesa eucarística. O Padre Cícero tirou do cálice uma pequena hóstia branca, depositando-a na língua dessa devota. Chamava-se Maria de Araújo, nome vulgar.

"Ao fechar a boca e as pálpebras, sob o manto, ela sentiu escorrer pelas comissuras dos lábios um líquido viscoso, da cor de sangue, segundo testemunharam os presentes. As partículas derreteram-se na língua da beata e tomaram, por vezes, a forma de um coração.
"Tal fato repetiu-se daí por diante e foi relatado por quantos o tinham assistido e verificado.

    "Corria o ano de 1891 e a substância hematóide, recolhida em panos, que todos queriam ver e tocar, seria entregue à custódia de sacerdotes e médicos, para que a examinassem e atestassem se era ou não o sangue de Nosso Senhor Crucificado. Os padres guardaram esses panos, a sete chaves, numa urna, no sacrário da capela do Santíssimo Sacramento da Matriz do Crato".

    Ralph Delia Cava, em MILAGRE EM JOASEIRO: "No Vale do Cariri, o povo não se apercebia da sutileza que permitia ao Padre Cícero e a outros sacerdotes falarem em público sobre os "fatos extraordinários", contanto que não os qualificassem de miraculosos. Ninguém em Joaseiro duvidava da ocorrência de um milagre cuja finalidade tinha sido, pretensamente, revelada a Maria de Araújo, em agosto de 1889: Deus escolhera Joaseiro para ser o centro de onde converteria os pecadores e salvaria a humanidade. A prova da missão divina do arraial estava nas levas infindáveis de romeiros que chegavam a Joaseiro. Aí, maçons brasileiros e protestantes buscavam a absolvição e retornavam à Igreja. Saravam-se os enfermos e os fiéis refortaleciam a sua fé. Ao partirem de volta, os romeiros levavam consigo um talismã, uma fita ou um pedaço de fazenda que tinham sido esfregados no vidro da redoma onde se guardavam os panos e as toalhas do altar manchados de vermelho pelo que se acreditava ser o Precioso Sangue de Cristo".

    E mais adiante o mesmo autor acrescenta: "A falta de iniciativa de Dom Joaquim (Dom Joaquim José Vieira, Bispo de Fortaleza), entre junho de 1890 e maio de 1891, permitiu enormemente que o milagre criasse raízes entre o clero e os fiéis, tanto no Vale, como no sertão dos estados vizinhos. Além disso, o seu pedido de que o Pe. Cícero apresentasse testemunhas "que possam depor sob juramento" quando à veracidade do milagre tornou-se uma razão para levar os fiéis a angariar testemunhas em defesa de sua causa. No final de 1890 e princípio de 1891, poucos eram os fiéis que hesitavam em proclamar, de público, a verdade do milagre".

    Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, das Universidades Federal e Estadual do Rio de Janeiro, na coletânea HISTÓRIA DO CEARÁ: "A Questão Religiosa de Juazeiro, embora aparentemente se tenha apresentado como um problema de existência ou não de Sangue de Cristo nas hóstias em transformação, na realidade foi uma luta dentro da Igreja. Essa instituição, que já se batera e continuava na peleja com o Estado brasileiro, se voltava, por força mesmo da política de romanização, para uma ação interna pela preservação da hierarquia, submissão dos grupos dominados de seguidores, pelo monopólio de interpretação (à luz da Teologia) de todo fenômeno religioso pela autoridade eclesiástica. Essa luta vai expor a contradição maior dentro da Igreja, qual seja, o universo simbólico das baixas camadas de crentes o catolicismo popular, frente ao monopólio de interpretação do religioso pela Teologia, vale dizer, a ruptura entre o catolicismo da hierarquia e o dos seguidores pobres".

    E para completar estes depoimentos, ouçam os José Comblim, em PADRE CÍCERO DE JUAZEIRO: "Então dom Joaquim assustou-se: diante dele estava o fantasma das heresias. Já em 1891 dom Joaquim tinha enviado uma comissão de inquérito formada pelos dois padres letrados da diocese, o padre Clycério da Costa Lobo e o padre Francisco Ferreira Antero, doutor em teologia. O inquérito durou um mês e os comissários interrogaram 10 beatas, 8 padres e 5 civis eminentes. Assistira m várias vezes ao milagre da transformação da hóstia em sangue. Concluíram que se tratava realmente de fatos sobrenaturais de origem divina.

    "Como explicar que esses dois teólogos tenham tão facilmente garantido a origem divina dos milagres? Alguns dizem que nesses primeiros tempos da República a espera do fim do mundo era tão forte que todos estavam dispostos a escolher sinais da proximidade desse fim do mundo. Em todo caso, os dois padres deram ao bispo o contrário do relatório que este esperava. O bispo sentiu-se traído pelos teólogos.

    "Em abril de 1892 aconteceu algo que convenceu o bispo de que havia um embusteiro. Foi roubada a urna que continha as hóstias e os panos manchados de sangue e que o bispo tinha mandado transferir para Crato. O acusado foi José Joaquim Marrocos, mestre-escola em Crato. Esse Marrocos tinha sido seminarista, mas foi expulso do seminário pelos lazaristas franceses. Apaixonava-se por tudo o que era religião e desde o início tomou a liderança dos movimentos de apoio ao padre Cícero. Não havia provas, mas de fato, 18 anos mais tarde, depois da morte de Marrocos, a urna foi descoberta entre os objetos que lhe pertenciam".

A PALAVRA DO PE. GOMES

    Das produções do Pe. Gomes uma se evidenciou desde seu lançamento, vistos os transtornos que veria de provocar, APOSTOLADO DO EMBUSTE, dedicada pelo autor "à memória de Dom Joaquim Vieira, herói tranquilo, que desmascarou o embuste, preveniu o cisma e manteve a dignidade do clero. A memória de Monsenhor Joviniano Barreto, vigário-mártir, "Revista Itaytera n° 2, ano de 1956.

    Neste ponto, achamo-nos na contingência de citar trechos da obra, no intuito de fornecer dados para uma interpretação dos acontecidos em Juazeiro, distantes que nos vemos, passado mais de um século de seus primeiros registros, dada a importância soberana da pesquisa histórica para orientação das gerações porvindouras.

    A tese de que José Marrocos utilizou-se de efeitos químicos na feitura do sangue das hóstias veio de ser sustentada pelo sacerdote no decorrer de todo o seu trabalho, do qual passamos a citar único e longo fragmento: "É historicamente certo que, ainda antes da eclosão do embuste, teria sido revelado ao Padre Cícero (segundo posterior declaração sua em depoimento) o advento de uma NOVA Redenção, de que ele seria o precursor e Juazeiro, o cenário, no qual Jesus Cristo verteria seu precioso sangue, que correria visivelmente de seu coração humano e visível, através das Sagradas Espécies.

    "Essa doutrina saiu da cabeça do "teólogo" José Marrocos, tendo-se em consideração que foi ele o cérebro do Padre Cícero na questão do embuste, com Floro Bartolomeu, no campo político. Foi no momento do delírio religioso do sacerdote que José Marrocos entrou em cena, solertemente associado a Maria de Araújo, dando ao levita a impressão de que a doutrina se objetivara, da qual os MILAGRES eram o testemunho.

    "José Marrocos teria tido em vista a projeção social do Padre Cícero e Juazeiro e, dentro dessa paisagem, o seu próprio destaque. Outros acham que ele agira inspirado no jansenismo de que teria sido inquinado. Ou ainda pelo ressentimento que lhe ficara, da saída forçada do Seminário. Achava oportunidade para desforrar-se da Autoridade Eclesiástica. Julgo que o inspiraram os três motivos, com a prevalença do primeiro".

    Ouvimos assim o Pe. Gomes sobre a matéria. Não se utilizou de meios tons; adotou verbo forte e contundente; cabendo-nos elucidar em nossas consciências as derivações necessárias à formação de juízo isento.

    Sabe-se da carência humana de referências divinas e esses complementos reclama de fé, sobretudo da fé simples. No encalço de suplementação antropológica sobre tais assuntos, requeiro a licença de citar mais um autor, Edmund Leach, quando nos afirma: "A religião está voltada, em toda parte, para a preocupação com o primordial, a antinomia entre a vida e a morte, procurando negar o vínculo binário entre as duas palavras. Isso é feito por meio da criação da ideia mística de "outro mundo", um mundo dos mortos onde a vida é perpétua. Os atributos desse outro mundo são necessariamente aqueles que não são deste mundo; a imperfeição daqui é compensada com a perfeição de lá. Mas essa ordenação lógica das ideias traz uma consequência desconcertante: Deus passa a pertencer ao outro mundo. O "problema" central da religião consiste, portanto, em restaurar alguma espécie de ponte entre o Homem e Deus.

    "Esse padrão está incorporado à estrutura de qualquer sistema místico. O mito primeiro discrimina entre os deuses e os homens para depois ocupar-se com as relações e os intermediários que ligam os homens aos deuses, (...)."  

OUTRAS NOTÍCIAS

    Agora que ficou na saudade nosso plano de escrever menos e de citar menos ainda, mesmo assim somos obrigados a prosseguir por mais um turno, pedido paciência aos que nos acompanharam. Queiram, pois, confiar que principiamos soldar as derradeiras peças deste quebra-cabeças, a rejuntar os claros e querer nos despedir. E agradecermos pela honrosa companhia.

    Se não dissemos antes, eis o momento de fazê-lo: O Pe. Gomes amou o Crato como a um verdadeiro filho. Vimos que aqui viveu longos anos da existência, escreveu sua história e até, queremos acrescentar, participou da criação das armas do Município, sendo autor da legenda LABORE que nelas se insere, desde julho de 1953.

    Ao Crato dedicou um dos seus livros, A CIDADE DE FREI CARLOS, onde encerra, com riqueza de detalhes, as notas a propósito de sua fundação, seus primeiros habitantes e colonizadores brancos. "A notícia mais antiga, até agora revelada, referente à Missão do Miranda, sua Igreja e frei Carlos, traz a data de 30 de julho de 1741. É o registro dum batizado num livro de registro de Batizado e Casamento, o qual se estende de 1741 a 1783 e pertence ao arquivo da paróquia do Icó, a cuja jurisdição esteve subordinado o Cariri até 1748", ali afirma.

    Variados e importantes enfoques resultaram do cuidado desse sacerdote na recomposição da história cratense, antecipando-se ao desgaste das eras e fornecendo-nos estrutura ao conhecimento do passado. Nessa empreitada, teve a coadjuvá-lo os demais historiógrafos reunidos sob a bandeira do Instituto Cultural do Cariri.

    De caráter altivo, brilhante, sempre pode exercer ascendência sobre aqueles que o tiveram como mestre. Sua posição quanto aos milagres de Juazeiro granjearam-lhe simpatias entre os cratenses e reações adversas da parte dos juazeirenses, vista a rivalidade que por vezes ainda se manifesta, originária dos tempos de antes, das lutas de 1914, por exemplo.

    Em 1964, a chamada Revolução de Março nele provocou sentimentos contrários aos militares, o que entretanto não veio a expressar de modo aberto por meio da imprensa, e só confirmáveis pelos que desfrutaram de sua proximidade. Nunca negava antipatia à influência estrangeira na política brasileira, propugnando pela formação de uma alma nacional. A época, essa onda de desnaturação da nossa cultura iniciava o seu ataque avassalador, vindo depois a dominar por inteiro os meios de comunicação de massa, como ora se constata, restando-nos quase nenhuma alternativa de vitória. Definição sua, referindo-se à Coca-Cola, símbolo do capitalismo americano espalhado pelo mundo, pode bem corroborar o que dissemos: Esta bebida é jurema adoçada, bem conhecida dos antigos.

CONCLUSÃO


    Reconhecemos um certo exagero de transcrições, sem que isto demonstre arrependimento tardio, por que esse foi o método mais oportuno para abordarmos o tema, dando-lhe sabor peculiar e preservando valiosos trunfos. Por vezes sentimo-nos quais caminhantes solitários, neste mundo de tantos livros e tão poucos leitores. Quisemos desta maneira noticiar o máximo do que escondem as bibliotecas e suas vastidões abandonadas.

    Enfim, vale ainda dizer que o Pe. Antônio Gomes de Araújo mereceu do Prof. Figueirêdo Filho os mais variados adjetivos: "professor que atuou, com segurança, no meio de seus alunos. Suas aulas foram sempre vivas, cheias, deixaram impressão imorredoura a todos. Em cada discípulo, constituiu um amigo que nunca o esquece, mesmo que resida em terras longínquas ou ocupe posição de relevo. Sua cadeira predileta foi História e é dos mais competentes pesquisadores de nosso passado, em terras nordestinas. Seu nome atravessou fronteiras".

    "Homem de trato social esmerado, sempre que um lar é atingido pela dor, é o primeiro a levar-lhe o bálsamo de uma palavra amiga.

    "Sobressai-se no trato pessoal, pela conversa franca e fluente, com a máxima tolerância em assuntos de natureza política ou religiosa, de sua íntegra formação eclesiástica".

    "Pe. Gomes é dos maiores pesquisadores de arquivos, para elucidar os fatos históricos do Cariri. Ajudou o emérito historiador Irineu Pinheiro em "Efemérides" e é divulgador da história regional.

    "É dos cratenses adotivos mais amantes de nossa terra. Crato deve-lhe bastante, em todos os campos da inteligência, na história, no jornalismo e no magistério. É ele cratense por direito natural de conquista, merecendo a gratidão unânime das gerações presentes e futuras".

    Estas palavras se efetivaram na prática, por intermédio da Resolução n° 2/68, de 30 de abril de 1968, da Câmara Municipal, quando foi agraciado com o título de cidadania da terra que tanto venerou.

    Em 29 de abril de 1975, atravessando problemas de saúde, voltou a Brejo Santo, seu natural, onde recebeu, em 01 de maio de 1977, antigos companheiros do ICC, para missa e sessão solene comemorativa de seus cinquenta anos de ordenação.

    E no seio dos familiares, a 26 de janeiro de 1989, da mesma cidade onde nascera, o Pe. Gomes retorna aos páramos eternos.

    Em 11 de junho do ano seguinte, teve seu nome escolhido para uma das avenidas do Crato, com início no final da rua Monsenhor Rocha e término no início da avenida Raimundo Pires Maia, ligando o Sossego ao Parque Floresta, conforme Projeto-de-Lei Municipal n° 1.409/90.

       14.08.93.

Tese de José Américo Monteiro Lacerda para a revista Itaytera, n° 39, Instituto Cultural do Cariri, Crato, 1995.


Fonte Bibliográfica:


- ARAÚJO, Antônio Gomes de - A CIDADE DE FREI CARLOS, Faculdade de Filosofia do Crato, Coleção Estudos e Pesquisas, Crato, 1971.
- ARAÚJO, Antônio Gomes de - APOSTOLADO DO EMBUSTE, Revista Itaytera n° 2, Instituo Cultural do Cariri, Crato, 1976.
- ARAÚJO, Antônio Gomes de - MITOS E REALIDADES, Revista Itaytera n ° 4, Instituto Cultural do Cariri, Crato, 1958.
- ARAÚJO, Maria do Carmo R. - A PARTICIPAÇÃO DO CEARÁ NA CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR, em HISTÓRIA  CEARÁ, coordenação de Simone de Souza, Universidade Federal do Ceará/ Fundação Demócrito Rocha Stylus Comunicações, Fortaleza, 1989.
- BARROS, Luitigarde Oliveira Cavalcanti - O MOVIMENTO RELIGIOSO DE JUAZEIRO DO NORTE/ PADRE CÍCERO E O FENÔMENO RELIGIOSO DO CALDEIRÃO, em HISTÓRIA DO CEARÁ, acima referida.
- BURNES, Edward Mcnall, Robert E. Lerner e Standish Meacham - A HISTÓRIA DA CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL: DO HOMEM DAS CAVERNAS AS NAVES ESPECIAIS, 30° Edição, Editora Globo, Rio de Janeiro, 1988.
- CAVA, Ralph Della - MILAGRES DE JOASEIRO, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977.
- COMBLIN, José - PADRE CÍCERO DE JOASEIRO, Coleção HOMENS E MULHERES DO NORDESTE, Série OS RELIGIOSOS, Edições Paulinas, S. Paulo, 1991.
- FIGUEIREDO FILHO, José Alves de - PADRE ANTÔNIO GOMES DE ARAÚJO, Revista Itaytera n° 20, Instituto Cultural do Cariri, Crato, 1976.
- LEACH, Edmund - ANTROPOLOGIA, Editora Ática, S. Paulo, 1983.
- MACEDO, Joaryvar - Prefácio de UM CIVILIZADOR DO CARIRI E OUTROS ESTUDOS, Faculdade de Filosofia do Crato, Coleção Estudos e Pesquisas, Crato, 1980.
- MACEDO, Nertan - O PADRE E ABEATA, 2ª Edição, Editora Renes/ Instituto Nacional do Livro, MEC, Rio de Janeiro/Brasília, 1981.
- NOBRE, Geraldo - A REVOLUÇÃO DE 1817 NO CEARÁ, em HISTÓRIA DO CEARÁ, acima referida.
- SOUSA, José Newton Alves de - CONTRIBUIÇÃO DO CARIRI CEARENSE À HISTORIOGRAFIA DO NORDESTE, Revista Itaytera n° 15, Instituto Cultural do Cariri, Crato, 1971.
- STUDART FILHO, Carlos - O PADRE GOMES DE ARAÚJO E "A REVOLUÇÃO DE 1817 NO CEARÁ", Tipografia Minerva, Fortaleza, 1962.





O Historiador Padre Antônio Gomes de Araújo foi um dos fundadores do
 Instituto Cultural do Cariri.


 “Um certo Padre Gomes”
De Everardo Norões


Dez horas da manhã.
Na sala de aula, duas altas janelas cortam
o claro dos céus em pedaços.
O professor profere a chamada.
O verbo é ‘proferir’; ele nunca chama: ordena.
Ele é padre, mas nada tem a ver com seus pares.
Basta ver o corte da batina, a faixa à cintura
que mais parece um obi de samurai.
Postura de quem está sempre à espreita,
aguarda o ataque.

Pronuncia os nomes, não os repete; olha a cara de cada um,
baixa a vista para o livro de anotações, escreve.
O que contam esses registros?
Depois, se não aprova o nominado,
ele o dispensa antes do início da classe.

(Comenta-se que presa à faixa não há uma katana,
o sabre japonês, mas um Smith&Wesson .38 duplo.
Única concessão que faz ao império do Tio Sam.)

A aula começa.
O professor comenta a diferença entre os homens do interior
e os que ficaram pelos litorais,
a arranharem a terra como caranguejos,
dixit Frei Vicente do Salvador, ou Vicente Rodrigues Palha,
nome laico do jesuíta baiano que descreveu a vida na Colônia.

A linha de pensamento do mestre se insinua
pelos meandros do rio São Francisco.
É regida pelas observações do mais brilhante historiador
de seu tempo, Capistrano de Abreu, ateu e, para seu desgosto,
pai de uma freira que se refugiou no claustro
e fez voto de silêncio.

Voltemos ao Padre, seu outro lado,
seu silêncio martirizado no quarto de estudos,
onde dormir é privilégio.
Aí doma seus fantasmas, suas letras.
Não tem com quem conversar, aprofundar argumentos,
buscar o verme que contamina o miolo de seu fruto,
o fruto vermelho da História.
Busca nos alfarrábios, cruza garatujas de batistérios.
E sempre Nascimento e Morte de permeio,
desmontados em árvores desenhadas em páginas coladas,
para chegar ao mais idiota descendente
de um coronel qualquer da Guarda Nacional.

O Álbvm do Seminário do Crato, de 1925
– álbvm com ‘v’, para imitar o latim da Santa Igreja –,
registra o aluno na página 202; o clérigo, na 207.
A fotografia da página 189, carcomida pela traça, revela:
batina, barrete, mas sem a capa romana
que o acompanharia durante tantos anos,
tremulante e negra sob o sol dos Cariris.
Pois assim reza o artigo 12
do capítulo III do Regulamento do Seminário Maior:
“Uma modéstia sem afetação e um porte digno
resaltem do seu todo, mormente nos actos religiosos
e quando estiverem recebendo instrucção” (sic).

É necessário lupa para recompor feições e formas.
Segundo da segunda fila, da direita para a esquerda.
A cabeça encoberta inclinada à direita;
deixa-se ver o relógio de algibeira,
quem sabe um Patek Philippe.
O rosto é magro; o nariz, aquilino, mouro;
as orelhas não se deixam passar despercebidas.
Não mira a objetiva do fotógrafo.
É uma visão para o largo,
um ar que o distingue da bonomia do grupo.
Tem um ar triste, inquieto.

Um homem sozinho atravessa a cidade:
batina negra, capa romana, faixa à cintura.
Segue o trajeto que vai da igreja da Sé ao Ginásio.
Quantas vezes terá feito esse percurso?
Saúda Tandô, sentado no meio-fio da praça.
“Em que pensa esse padre, com jeito de homem”,
se pergunta o anão?
Aqui tudo é vigiado.

A cada janela há um olho à espreita.
O padre caminha sem prestar atenção a quem passa,
nem atentar para quem se furta por detrás das gelosias.
Anda rápido para dar tempo à chamada do refeitório e,
logo depois, recomeçar reflexões e leituras.
Abrirá a porta de vidro da estante de cedro
com a chave escondida dentro do sapato, enrolada na meia.
Lembrança do regulamento, de quando era regente:
“Só poderão fazer leituras extra-programma mediante prévia
autorização do Padre Prefeito” (sic).

Passa o Padre Gomes e Tandô, o anão, se pergunta:
Em que diabo está pensando esse homem?”
Somente hoje é possível compreender
o porquê daqueles passos apressados,
daquela inquietação permanente,
de sua genialidade e equívocos.

A fotografia:
não é mais necessário lupa para recompor as feições.
Não mira a objetiva do fotógrafo.
É uma visão para o largo,
um ar que o distingue do resto.
Tem um ar triste, inquieto.
Pensa num mundo mais largo, sem cadeias,
distante do jugo das genealogias,
longe de um sol que é o mesmo sol de todos os dias,
segundo Machado de Assis,
onde nada existe que seja novo,
onde tudo cansa, tudo exaure...



O Brejo é Isso!

Bruno Yacub Sampaio Cabral

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