Lá pela altura dos meus oito anos, que me recorde, a Semana Santa aparecia como uma época de respeito, carregada de medo e mistério. Era a época em que a Igreja refletia e orava sobre o Cristo crucificado.
Havia duas coisas que me metiam muito medo nesse tempo: contava-se a lenda que, na Missa do Galo, o padre procuraria na Bíblia Sagrada um pingo do sangue de Jesus Cristo e, caso não encontrasse o precioso pingo, seria o fim do mundo! Isso me deixava apavorado; mas o que me matava mesmo de medo era a tropa de Caretas soltos nas ruas, pedindo jejuns nas portas das casas, nas bodegas, na feira, nos sítios, arrastando seus chocalhos, com suas máscaras pavorosas de papelão, de couro ou de remendos de pano. Alguns, com ares de líderes, tinham chifres como adornos, chicotes mais ameaçadores – era como se o inferno tivesse baixado na Terra.
O tormento durava do Domingo de Ramos ao Sábado de Aleluia. A meninada vivia com o coração acelerado ao som do primeiro chocalho. Era chororô e gritaria. Uns partiam para debaixo da cama – eu corria a me esconder dentro do móvel da máquina de costura da minha mãe. Ali eu duvidava que Careta me encontrasse!
É uma tradição muito antiga, trazida pelos portugueses e espanhóis, desde o descobrimento do Brasil; mas sua origem pode estar associada a um culto pagão mais distante no tempo, que festeja o início da primavera.
Vovó me contava que os caretas eram os ‘cãos’ que levavam Judas para o Inferno, no Sábado de Aleluia. E me dizia que tudo começou porque Judas Iscariotes teve inveja de Jesus e traiu-o com um beijo dado em sua face. O gesto foi a senha dada aos soldados do Império Romano, entregando Nosso Senhor para iniciar o triste calvário da crucificação. Como paga pela traição, Judas recebeu trinta moedas de ouro. Consumada a trairagem, arrependeu-se, quis restituir o dinheiro, mas não conseguiu. Cheio de remorsos, enforcou-se numa corda. Os Caretas apareciam para atormentar Judas por tamanha desfeita: a traição contra o Filho de Deus.
Na minha cabeça, as portas do inferno estavam abertas e os ‘cãos’ estavam soltos para levar Judas de corpo e alma.
Fui crescendo e perdendo a fobia pelos bichos feios. Já me divertia com eles. Gostava de ouvi-los, com sua voz gutural, chamando todo mundo de “padim” e de “madinha”, pedindo dinheiro, fruta, arroz, cachaça...
Descobri que os caretas juntavam tudo o que arrecadavam numa espécie de sítio: um quadrado, demarcado com palmas de coco e uma linha no chão batido de terra. Ao centro, estava amarrado o Judas, um mal-amanhado boneco de pano, recheado de palha de milho, dependurado enforcado com uma corda, às vezes com os bolsos exibindo notas de dinheiro para fora.
O Sábado de Aleluia mais movimentado à que assisti aconteceu em Porteiras, nas cercanias do sítio Cancelas, meu reduto materno. Foi lá onde vi os Caretas mais valentes, mais assustadores, mais violentos e seu “sítio” mais rico. Uma multidão se aglomerava ao redor da demarcação. Muitos homens e rapazes corajosos invadiam o sítio, tentando despistar os horripilantes vigias e se livrar de suas chicotadas. Alguns vestiam até três calças, varias camisas para aguentar as cipoadas e entravam no sítio para tentar a sorte de arrebatar valiosa prenda: uma nota alta, uma garrafa de conhaque, um jerimum maduro... Alguns se feriam graves, não se importavam de exibir os vergões de chicotes na pele. A multidão vibrava cada vez que alguém alcançava um prêmio; mangava quando alguém se lascava na pêia.
Por fim, Judas era surrado e queimado pelos Caretas, cumprindo sua sentença de ir arder nas profundezas do Inferno.
Algumas comunidades dão nomes aos seus Judas, geralmente políticos que caem na antipatia de sua gente ou perversos criminosos, por exemplo.
Hérlon Fernandes Gomes
10 de Abril de 2022.