Ainda citando Carlos Sousa, em - Milagres: Nossa Terra Cariri - o autor nos conta que, para conquistar decisivamente o controle político e econômico sobre Milagres, foi de grande importância o embate político que o coronel Domingos Leite Furtado obteve com o capitão Antônio Leite Rabelo da Cunha entre 1887 e 1889 e do qual saiu vitorioso.
Antônio Leite Rabelo da Cunha foi casado três vezes, constituindo uma prole de trinta filhos. Foi seminarista, tendo abandonado o seminário dez meses antes da sua ordenação, em virtude do falecimento do seu pai. Após o abandono do seminário, foi convidado para exercer a reitoria do seminário São José, em Crato. Além de suas fazendas localizadas em Rosário, Olho D’água, em Missão Velha; e Mundés, em Barbalha, adquiriu três propriedades em Brejo Santo: Pitombeira, Garanhuns e Horto, onde se estendia até o Agreste.
O capitão Antônio Leite pertencia ao partido liberal, do grupo dos Paulas. Sua fazenda localizada no distrito de Podimirim e era conhecida como fazenda Rosário, próspera e produtora de rapadura, aguardente e melaço, essa propriedade despertava a cobiça de outros senhores de terra do vale dos Cariris Novos. O capitão Antônio Leite tinha assim inimigos poderosos e um deles, era o próprio primo, Domingos Leite Furtado.
O Pároco da vila de Milagres, padre Manoel Rodrigues de Lima, também não nutria simpatias pelo capitão Antônio Leite, que não perdia ocasião de lhe mover campanha difamatória, mesmo no púlpito da Igreja Matriz de Nossa Senhora dos Milagres.
Os ânimos políticos em Milagres se acirraram ainda mais após as polêmicas eleitorais de 1885, e depois com a questão da permanência do trabalho escravizado no Município, mesmo após as leis abolicionistas aprovadas, entre 1882 e 1883 no Ceará.
O juiz Antônio Joaquim do Couto Cartaxo, pressionado pelo Governo Provincial e pela população negra livre e escravizada do vale, se obrigava a executar o cumprimento das Leis Provinciais e gerais em fins de 1886. Anunciou ao Presidente da Província do Ceará, Miguel Calmon du Pin e Almeida, que em 1887, já não haveria mais nenhum escravizado no Município.
Parece que para garantir o cumprimento da sua palavra, o Juiz ordenou ao então Delegado de Milagres, Domingos Leite Furtado, que desse uma batida na fazenda do capitão Antônio Leite Rabelo da Cunha em busca de escravos, isso ocorreu em 1887.
O capitão Antônio Leite escreveu para o jornal O Libertador, denunciando as arbitrariedades do Juiz e do Delegado de Milagres. Na correspondência que o jornal publicou, o fazendeiro Antônio Leite insultava o delegado Domingos Furtado, o Juiz e outros aliados destes. Imediatamente Joaquim do Couto Cartaxo, Domingos Leite Furtado e outros se voltaram contra Antônio Leite Rabelo da Cunha e seus aliados. O jornal Constituição, datado em 27.04.1888, publicou uma carta de Domingos Leite Furtado, também insultando o Capitão Antônio Leite:
“Ao publico.
Não pretendia voltar mais a imprensa; mas sendo d’uma hora por outra, caluniado por uma quadrilha de magarefes de carne humana, (embora acobertados com o luctuoso manto da hypocrisia) conhecidos nesta terra por Cunhas Rabellos ou Crueiras, julguei conveniente voltar mais uma vez a ella, para esmagar como já o tenho feito, a essas víboras da reputação alheia, visto que fui provocado no “Libertador” n° 3 de janeiro deste anno por um dos – setes sábios da Grécia, o Sr. Capitão Antônio Leite Rabello da Cunha - a luz dos milagrenses, - num acervo de inverdades e insultos, próprios de si, atirados a minha pessoa e a diversos cavalheiros distinctos deste termo, somente porque, há tempo, nos pozemos a salvo de suas perfídias.
É preciso se ter muita falta de pudor para dizer como disse o Sr. Capitão Leite que fora protector dos escravizados neste município, quando, fôra ele, seu “milagroso” irmão Manoel Crueira, collector e mais membros de sua família, os únicos que venderam escravos neste município, (os poucos que possuíam) para não morrerem a fome na crise de 77! Provoco o Sr. Capitão Leite para que prove o contrário disso.
Quem melhor fora protector dos escravos, quem muitas das vezes desagarrava os de suas mulheres e filhos para vender ou quem os comprava a contos de réis e á mais, para não os ver sahir de sua terra natal?
Em sua estiradeira em forma de artigo disse o Sr. Capitão Leite que nós intentamos perde-lo ao menos politicamente. Que desparate!!
Qual fora a influencia politica que já tivera tal criatura, a não ser a que eu e minha família, incautos, dava-lhe?
Pretendia, é certo, mostrar bem patente a influência politica de tal criatura, e disto com muita antecedência o preveni não só cabalmente como pela imprensa de minha província, porém assim não sucedeu, por se ter o capitão agarrado com bom santo.
Disse ainda o capitão em seu aranzel que em minha casa se tinha reunido um grupo de sessenta a setenta homens, notificados á minha ordem e do ilustre Sr. Dr. Cartaxo com o fim de ataca-lo em sua fazenda Rosário, e que isto havia sido presenciado pelo Revd. Vigário desta freguezia. Nunca vi mentir-se tanto! Primeiramente mentiu dizendo que possuía fazenda chamada Rosário, porque não a possue, e se a possue é de porcos e ainda não é conhecida dos habitantes, já não digo do termo, mas de toda a comarca; e em segundo lugar mentiu porque afirmou que eu e o bacharel Cartaxo havíamos mandado notificar gente servindo-nos dos cargos que ocupamos, para ataca-lo nessa imaginaria fazenda, visto como provo o contrario, com atestado do próprio vigário a quem o mesmo capitão referiu-se.
Concluio o tal capitão responsabilizando-nos não só por sua vida como por qualquer destruição que venha a sofrer em sua fazenda Rosario.
Desde já garanto ao Sr. Capitão que por minha parte aceito a tal responsabilidade, visto como, relativamente a sua vida, diz o rifão antigo “que vaso ruim não se quebra”; e tanto é assim que o cholera morbus quando andou por estes sertões respeitou-o.
E quanto a destruição de sua fazenda Rosario e de outra qualquer, por não conhecer a fazenda do pertencedo tal senhor.
Concluido, peço aos ilustres três Srs. Redactores da “Constituição” que façam publicar com este atestado do digno vigário desta freguezia, que a este acompanha, como também a resposta que dei em data de 23 de Maio do anno passado ao Sr. Dr. Chefe de polícia, por acusações que me fez o collector provincial deste município Manoel Leite Rabello da Cunha ao Exmo. Sr. presidente da província, com todos os documentos que o acompanhara, visto como fui de novo acusado por um irmão do dito collector em sentido idêntico.
Pode, Sr. Redactor da “Constituição”, dar publicidade a estas linhas pelas quaes se responsabiliza o abaixo assignado.
Milagres, 13 de abril de 1888.
Domingos Leite Furtado.
Illm. Rvdm Sr. Vigario da freguezia de Milagres – Domingos Leite Furtado, actual delegado de policia deste termo de Milagres, precisa para seu documento que V. Rvdmª digne se de atestar ao pé desta, em fé de seu cargo, se lhe constou em algum tempo, que o suplicante servindo-se do cargo que ocupa, mandaria notificar gente ou mesmo tomara parte em qualquer reunião com o fim de atacar a povoação de Rosario, á busca de escravos.
Assim, pois, pede a V. Rvdmª que se digne de atestar na forma requerida.
E. R. Mcê.
Milagres, 8 de abril de 1888
Domingos Leite Furtado.
Attesto em fé de meu cargo que durante o tempo de três anos que rejo ou parochio esta Freguezia, não me consta que o suplicante em tempo algum abusasse do cargo que ocupa, mandando notificar pessoas, nem também tomado parte alguma em qualquer reunião com o fim de atacar a povoação do Rosario á busca de escravos. Milagres, 8 de abril de 1888. – O Vigario Manoel Rodrigues Lima.
Estava reconhecida a firma pelo tabelião publico.”
A questão foi acirrada, tendo o Cel. Domingos Leite pleiteado o assassinato do Cap. Antônio Leite. Por ironia do destino, como os assemelhavam-se fisicamente, os sicários confundiram-lhe num dia de feira na vila de Milagres, atirando em seu mandante, baleando-o em uma das pernas. Este fato foi noticiado no Jornal Constituição – Ano XXVII, Num. 175, pág. 1, de 17.11.1888:
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Jornal Constituição (CE); de 17.11.1889. |
“É grave
Os colegas do Libertador e Cearense noticiam factos tristíssimos ocorridos em varias localidades do Cariry, sobretudo em Milagres, onde se diz que fora assassinado o nosso amigo Manoel Maranhão e gravemente feridos, correndo risco de vida, o nosso prestimoso e distinctissimo amigo capitão Domingos Leite Furtado e seu sobrinho Manoel Nasario, além de muitas outras pessoas.
Nenhuma comunicação recebemos ainda acerca de tão desgraçada occurrencia; mas sendo certo que trata-se de um facto gravíssimo, excusado nos parece pedirmos ao Exm. Sr. coronel Moraes Jartim providencias para prompta e severa punição dos criminosos; porque temos como certo que S. Exc., ainda neste ponto, se relevará digno dos seus créditos.
Quando tivermos comunicações directas, q’certamente não demorarão, nos ocuparemos ainda de tão lamentáveis acontecimentos.”
Sendo sabedor do ocorrido, o Cel. Manoel Inácio Bezerra, genro do Cap. Antônio Leite, interviu na questão como apaziguador e convencendo-o a vir residir no Distrito de Brejo dos Santos, fundando ali o clã da família Leite.
Por Bruno Yacub Sampaio Cabral.
- LIMA, Francisco Augusto de Araújo; Famílias Cearenses Um; Fortaleza; Editora Premius; 2001;
- LIMA, Francisco Augusto de Araújo; Siará Grande: uma província portuguesa no nordeste oriental o Brasil; Fortaleza; Expressão Gráfica e Editora; v.III; 2016;
- SOUSA, Carlos César Pereira de; Milagres: nossa terra cariri; Fortaleza; Expressão Gráfica e Editora; 2021;
- MARANHÃO, Leite; Contribuição ao estudo genealógico das principais Famílias de Milagres (Família do Coité); Revista do Instituto do Ceará; Ano LXIV; 1950;
- LACERDA; José Sampaio; História da Família do Coité (Mauriti - Ceará) e outros assuntos; Da Anta Casa Editora; Brasília; 2004;