Aspecto atual do local onde abrigou uma senzala em Brejo Santo no século XIX, na região da cidade conhecida popularmente como Rua da Taboqueira. |
A escravidão no Cariri cearense,
uma região marcada por suas peculiaridades econômicas e geográficas,
desempenhou um papel significativo na história do Ceará. Durante os séculos XVIII e XIX, a escravização, embora muitas vezes associada à agricultura,
especialmente no cultivo de cana-de-açúcar e café em outras partes do estado,
também teve uma forte presença nas atividades pecuárias da região. Em Brejo
Santo, por exemplo, a escravização esteve diretamente ligada ao ciclo
curraleiro, que envolvia a criação de gado, uma atividade predominante na
localidade. As terras de Brejo Santo, que entre 1814 e 1889 pertenciam ao
município de Jardim, exemplificam como o trabalho escravo não se limitava às
grandes plantações, mas também se estendia às pequenas propriedades rurais,
onde os escravizados eram essenciais para a manutenção da economia local.
O caso de Francisco José Gomes
de Sá, um dos primeiros proprietários de terras na região, é emblemático para
entender a dinâmica da escravidão no Cariri. Francisco José, vindo de Cabrobó,
em Pernambuco, estabeleceu-se em Brejo Santo na segunda metade do século XIX, onde construiu três casas de
pedra e cal: uma para sua residência, uma para visitas e uma senzala, onde
ficaram alojados os escravizados, como Maria Nicácio e Paranhos. A construção dessa
senzala, que ficava localizada na atual Avenida Coronel Basílio Gomes,
popularmente conhecida como Rua da Taboqueira, é um marco importante na
história da cidade, pois simboliza a presença do sistema escravista no coração
do Cariri. O nome da rua, "Taboqueira", remonta à vegetação de
tabocas que circundava o riacho local, uma área que desempenhou um papel
central no desenvolvimento da cidade. Essas informações foram registradas por
José Gomes Medeiros, mais conhecido como Zuca de Tobias, em seu livro A
Origem de Brejo Santo (2000, p. 11 e 12), no qual ele, bisneto de
Francisco José Gomes de Sá, narra a história de sua família e a construção das
primeiras casas em Brejo Santo.
O famoso Casarão do Coronel
Basílio, hoje, embora tenha sua fachada descaracterizada e sua estrutura
dividida em duas residências, ainda conserva aspectos que refletem a
arquitetura original, como o recuo das construções em relação ao atual
arruamento da cidade. Este recuo é um elemento que remete à organização inicial
da área, que foi projetada antes do arruamento moderno e, portanto, reflete a
disposição da cidade naquele contexto histórico. Segundo José Gomes Medeiros, a Rua da Taboqueira não recebeu seu nome por conta de quem a
construiu, mas sim de quem a comprou — no caso, o Coronel Basílio Gomes da
Silva, que adquiriu as casas de Francisco José Gomes de Sá após este enfrentar
dificuldades econômicas. Como Medeiros descreve, Francisco José trouxe muito
gado bovino e equino da região do Rio São Francisco, mas, ao longo do tempo, os
animais fugiam, e ele mandava seus escravizados atrás, os quais nunca mais
retornavam, fugindo para o Quilombo em Alagoas. Enfraquecido economicamente,
Francisco José acabou vendendo suas propriedades na Taboqueira para o Coronel
Basílio, libertou o restante dos escravizados e retornou às margens do Velho
Chico.
Esse episódio evidencia não
apenas a transição do poder econômico na região, mas também revela como as
narrativas históricas frequentemente são construídas a partir da perspectiva da
elite, que muitas vezes reinterpreta os fatos de acordo com seus interesses e
conveniências. O foco das histórias sobre a formação de cidades, como a de
Brejo Santo, tende a ser centrado nos feitos dos grandes proprietários e nas
mudanças que envolveram figuras como o Coronel Basílio Gomes da Silva, em vez
de se dar a devida atenção aos aspectos mais profundos da história, como as
condições de vida e as lutas dos escravizados. No caso específico da Rua da
Taboqueira, a ênfase recai sobre os homens que compraram as propriedades, como
Basílio, e não sobre as pessoas que, sob extrema opressão, deram forma à
história local. Isso aponta para uma tendência mais ampla de invisibilidade das
narrativas das classes subalternas na construção da memória histórica.
Maria Nicácio, uma das
escravizadas na propriedade de Francisco José Gomes de Sá, teve um papel
particular após a abolição. Libertada junto com outros cativos, ela continuou a
servir à elite local, mas de uma maneira que exemplifica como os ex-escravizados
muitas vezes se viam inseridos em uma estrutura social que, embora os tivesse
libertado, ainda os subordinava de diversas formas. Maria Nicácio se tornou
parteira e, assim, passou a trazer para o mundo filhos de famílias que, no
passado, haviam sido seus senhores. Ela cortou o cordão umbilical de várias
figuras importantes da cidade, como Zuca de Tobias, Mário Leite,
Chico Inácio, Zé Amaro, Maria Macêdo, Auristela Arrais, entre outros, conforme
relatado por Lenira Macêdo em Recortes de Vidas (2006, p. 122). Essa
realidade revela um aspecto crucial da continuidade das relações de poder e
dependência entre a elite e os ex-escravizados, mesmo após a abolição. Embora
Maria Nicácio tenha sido libertada, seu serviço à elite local demonstra como as
antigas estruturas sociais não desapareceram completamente, e como, mesmo em
liberdade, os ex-escravizados continuaram a desempenhar papéis subordinados
dentro da sociedade.
Portanto, ao refletirmos sobre a
história da escravidão no Cariri, especialmente em Brejo Santo, é crucial
questionarmos as versões predominantes e buscar reconhecer os registros e
testemunhos que abordam a resistência, o sofrimento e a busca pela liberdade
dos escravizados. O estudo dessas histórias, que muitas vezes são
marginalizadas ou distorcidas, é fundamental para a construção de uma memória
mais justa e representativa da sociedade cearense. A preservação do registro
histórico da senzala de Francisco José Gomes de Sá, assim como a valorização
dos relatos sobre os fugidos para o Quilombo e a análise crítica das narrativas
históricas dominantes, são essenciais para entender a complexidade das relações
sociais e econômicas que moldaram o Cariri.
A escravidão no Cariri, e em
Brejo Santo em particular, foi um processo multifacetado que não se limitou à
agricultura, mas que envolveu diversas atividades econômicas, como o ciclo
curraleiro e as pequenas propriedades urbanas. A presença de senzalas como a de
Francisco José Gomes de Sá revela a complexidade do sistema escravocrata na
região, onde a criação de gado e o trabalho nas pequenas propriedades dependiam
diretamente da força de trabalho escravizado. Mesmo em um contexto de grandeza
econômica menor em relação a outras áreas do Ceará, como o litoral, a
escravidão se consolidou como um sistema fundamental para a economia local.
O registro da existência da
senzala de Francisco José Gomes de Sá e a história da escravização em Brejo
Santo oferecem um importante olhar sobre o sistema escravocrata no Cariri
cearense. Esse episódio, embora específico de uma propriedade particular, ilustra
um processo mais amplo de resistência, luta e transformação social que ocorreu
na região. A preservação dessas memórias históricas é essencial para entender
as origens da cidade e os legados da escravidão no Ceará, garantindo que as
futuras gerações reconheçam a complexidade e as contradições de sua formação
social e econômica.
Por Bruno Yacub Sampaio Cabral
O Brejo é Isso!
Referências bibliográficas:
MACÊDO, Lenira. Recortes de Vidas. Brejo Santo: edição da autora: 2006, p. 122.
MEDEIROS, José Gomes. A origem
de Brejo Santo. Brejo Santo: edição do autor, 2000, p. 11 e 12.
Texto incrível! Uma narrativa que nos faz pensar as invisibilidades, inclusive de registros, e sobre o perigo da história única, como nos alerta Chimamanda Ngozi Adichie.
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