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A MUNGANGA PROMOÇÃO CULTURAL: O Brejo é Isso!

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

A SENZALA DE BREJO SANTO E A ESCRAVIZAÇÃO NO CARIRI CEARENSE

 

Aspecto atual do local onde abrigou uma senzala
em Brejo Santo no século XIX, na região da cidade
 conhecida popularmente como Rua da Taboqueira.

   


    A escravidão no Cariri cearense, uma região marcada por suas peculiaridades econômicas e geográficas, desempenhou um papel significativo na história do Ceará. Durante os séculos XVIII e XIX, a escravização, embora muitas vezes associada à agricultura, especialmente no cultivo de cana-de-açúcar e café em outras partes do estado, também teve uma forte presença nas atividades pecuárias da região. Em Brejo Santo, por exemplo, a escravização esteve diretamente ligada ao ciclo curraleiro, que envolvia a criação de gado, uma atividade predominante na localidade. As terras de Brejo Santo, que entre 1814 e 1889 pertenciam ao município de Jardim, exemplificam como o trabalho escravo não se limitava às grandes plantações, mas também se estendia às pequenas propriedades rurais, onde os escravizados eram essenciais para a manutenção da economia local.

    O caso de Francisco José Gomes de Sá, um dos primeiros proprietários de terras na região, é emblemático para entender a dinâmica da escravidão no Cariri. Francisco José, vindo de Cabrobó, em Pernambuco, estabeleceu-se em Brejo Santo na segunda metade do século XIX, onde construiu três casas de pedra e cal: uma para sua residência, uma para visitas e uma senzala, onde ficaram alojados os escravizados, como Maria Nicácio e Paranhos. A construção dessa senzala, que ficava localizada na atual Avenida Coronel Basílio Gomes, popularmente conhecida como Rua da Taboqueira, é um marco importante na história da cidade, pois simboliza a presença do sistema escravista no coração do Cariri. O nome da rua, "Taboqueira", remonta à vegetação de tabocas que circundava o riacho local, uma área que desempenhou um papel central no desenvolvimento da cidade. Essas informações foram registradas por José Gomes Medeiros, mais conhecido como Zuca de Tobias, em seu livro A Origem de Brejo Santo (2000, p. 11 e 12), no qual ele, bisneto de Francisco José Gomes de Sá, narra a história de sua família e a construção das primeiras casas em Brejo Santo.

    O famoso Casarão do Coronel Basílio, hoje, embora tenha sua fachada descaracterizada e sua estrutura dividida em duas residências, ainda conserva aspectos que refletem a arquitetura original, como o recuo das construções em relação ao atual arruamento da cidade. Este recuo é um elemento que remete à organização inicial da área, que foi projetada antes do arruamento moderno e, portanto, reflete a disposição da cidade naquele contexto histórico. Segundo José Gomes Medeiros, a Rua da Taboqueira não recebeu seu nome por conta de quem a construiu, mas sim de quem a comprou — no caso, o Coronel Basílio Gomes da Silva, que adquiriu as casas de Francisco José Gomes de Sá após este enfrentar dificuldades econômicas. Como Medeiros descreve, Francisco José trouxe muito gado bovino e equino da região do Rio São Francisco, mas, ao longo do tempo, os animais fugiam, e ele mandava seus escravizados atrás, os quais nunca mais retornavam, fugindo para o Quilombo em Alagoas. Enfraquecido economicamente, Francisco José acabou vendendo suas propriedades na Taboqueira para o Coronel Basílio, libertou o restante dos escravizados e retornou às margens do Velho Chico.

    Esse episódio evidencia não apenas a transição do poder econômico na região, mas também revela como as narrativas históricas frequentemente são construídas a partir da perspectiva da elite, que muitas vezes reinterpreta os fatos de acordo com seus interesses e conveniências. O foco das histórias sobre a formação de cidades, como a de Brejo Santo, tende a ser centrado nos feitos dos grandes proprietários e nas mudanças que envolveram figuras como o Coronel Basílio Gomes da Silva, em vez de se dar a devida atenção aos aspectos mais profundos da história, como as condições de vida e as lutas dos escravizados. No caso específico da Rua da Taboqueira, a ênfase recai sobre os homens que compraram as propriedades, como Basílio, e não sobre as pessoas que, sob extrema opressão, deram forma à história local. Isso aponta para uma tendência mais ampla de invisibilidade das narrativas das classes subalternas na construção da memória histórica.

    Maria Nicácio, uma das escravizadas na propriedade de Francisco José Gomes de Sá, teve um papel particular após a abolição. Libertada junto com outros cativos, ela continuou a servir à elite local, mas de uma maneira que exemplifica como os ex-escravizados muitas vezes se viam inseridos em uma estrutura social que, embora os tivesse libertado, ainda os subordinava de diversas formas. Maria Nicácio se tornou parteira e, assim, passou a trazer para o mundo filhos de famílias que, no passado, haviam sido seus senhores. Ela cortou o cordão umbilical de várias figuras importantes da cidade, como Zuca de Tobias, Mário Leite, Chico Inácio, Zé Amaro, Maria Macêdo, Auristela Arrais, entre outros, conforme relatado por Lenira Macêdo em Recortes de Vidas (2006, p. 122). Essa realidade revela um aspecto crucial da continuidade das relações de poder e dependência entre a elite e os ex-escravizados, mesmo após a abolição. Embora Maria Nicácio tenha sido libertada, seu serviço à elite local demonstra como as antigas estruturas sociais não desapareceram completamente, e como, mesmo em liberdade, os ex-escravizados continuaram a desempenhar papéis subordinados dentro da sociedade.

    Portanto, ao refletirmos sobre a história da escravidão no Cariri, especialmente em Brejo Santo, é crucial questionarmos as versões predominantes e buscar reconhecer os registros e testemunhos que abordam a resistência, o sofrimento e a busca pela liberdade dos escravizados. O estudo dessas histórias, que muitas vezes são marginalizadas ou distorcidas, é fundamental para a construção de uma memória mais justa e representativa da sociedade cearense. A preservação do registro histórico da senzala de Francisco José Gomes de Sá, assim como a valorização dos relatos sobre os fugidos para o Quilombo e a análise crítica das narrativas históricas dominantes, são essenciais para entender a complexidade das relações sociais e econômicas que moldaram o Cariri.

    A escravidão no Cariri, e em Brejo Santo em particular, foi um processo multifacetado que não se limitou à agricultura, mas que envolveu diversas atividades econômicas, como o ciclo curraleiro e as pequenas propriedades urbanas. A presença de senzalas como a de Francisco José Gomes de Sá revela a complexidade do sistema escravocrata na região, onde a criação de gado e o trabalho nas pequenas propriedades dependiam diretamente da força de trabalho escravizado. Mesmo em um contexto de grandeza econômica menor em relação a outras áreas do Ceará, como o litoral, a escravidão se consolidou como um sistema fundamental para a economia local.

    O registro da existência da senzala de Francisco José Gomes de Sá e a história da escravização em Brejo Santo oferecem um importante olhar sobre o sistema escravocrata no Cariri cearense. Esse episódio, embora específico de uma propriedade particular, ilustra um processo mais amplo de resistência, luta e transformação social que ocorreu na região. A preservação dessas memórias históricas é essencial para entender as origens da cidade e os legados da escravidão no Ceará, garantindo que as futuras gerações reconheçam a complexidade e as contradições de sua formação social e econômica.


Por Bruno Yacub Sampaio Cabral


O Brejo é Isso!


Referências bibliográficas:

MACÊDO, Lenira. Recortes de Vidas. Brejo Santo: edição da autora: 2006, p. 122.

MEDEIROS, José Gomes. A origem de Brejo Santo. Brejo Santo: edição do autor, 2000, p. 11 e 12.


Um comentário:

  1. Texto incrível! Uma narrativa que nos faz pensar as invisibilidades, inclusive de registros, e sobre o perigo da história única, como nos alerta Chimamanda Ngozi Adichie.

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