A Munganga Promoção Cultural

A MUNGANGA PROMOÇÃO CULTURAL: O Brejo é Isso!

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

BENONI ANSELMO DE ARAÚJO - O CINE ALVORADA E A MAGIA DA SÉTIMA ARTE EM BREJO SANTO

Encontrei esta fotografia do Cine Brasil, em Porto Velho, que em muito lembra o Cine Alvorada. Foram cinemas contemporâneos. Créditos de colorização da foto de Luís Claro.

Era uma manhã de 1987. Eu devia ter uns seis anos. Como um ritual de domingo, saía da minha casa, logo depois do café, para tomar banho de piscina, no Brejo Santo União Clube. Encontraria meu pai, que acordava muito mais cedo e lá já estava, para nadar com a piscina sem ninguém, pois em breve a meninada a tomaria como um enxame. Na quadra que antecedia o clube, como parte desse ritual, eu me demorava por alguns minutos, parado em frente do prédio abandonado do Cine Alvorada. Chamava-me atenção sua pintura carcomida pelo tempo, seu escombros, sua decadência, em si. Eu sentia pena. A imagem daquele prédio abandonado me prendia misteriosamente. Anos atrás, o teto do cinema desabou, sentenciando a morte daquele lugar, palco de tanta alegria. Através de uma grade empoeirada, pegava-me a inspecioná-lo, na minha curiosidade de menino, até onde a vista alcançasse. Havia um cartaz de King Kong, manchado pela umidade e carcomido pelo tempo; telhas de aranha e cadeiras de madeira quebradas se espalhavam entre poeira e desvãos.

A história do Cine Alvorada está diretamente ligada a Benoni Anselmo de Araújo, o primogênito do casal João Emídio de Araújo e Maria Anselmo de Araújo, nascido na Vila de Brejo dos Santos, em 1923.

Desde muito cedo, notabilizou-se pelo seu amor aos estudos, especialmente pela língua portuguesa e literatura. Conforme declarou seu irmão, Geraldo William de Araújo, Benoni "despertou para a ideologia socialista após ler Os subterrâneos da Liberdade, de Jorge Amado , convertendo-se num assíduo devorador da literatura socialista de Marx, Engels, Antonio Gramsci, Lênin e congêneres." Foi de sua iniciativa, com a amiga Lenira Macedo, a realização de uma campanha para fundação da primeira biblioteca de Brejo Santo, que levava o nome da professora Balbina Viana Arrais.

Viajou pelo Brasil e era apaixonado por cinema. Aquilo era um sonho! Na pacata Brejo Santo, esteve ligado à história cinematográfica dos primeiros cinemas, de curta duração. O advento do Cine Alvorada representou o mais ousado pacto da sociedade civil, naqueles idos dos anos 1960, organizada principalmente por comerciantes fortes e encabeçada por Benoni, que viam naquele projeto moderno, uma grande benfeitoria em prol do lazer e da cultura da gente.

Benoni Anselmo, à esquerda, com amigos, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Provavelmente nos anos 40.

O ano de 1967 foi glorioso para aquele cinema, porque Benoni e o prefeito Emílio Salviano foram até Fortaleza e conseguiram a importante missão de incluir o longínquo Cine Alvorada no circuito nacional de distribuição de filmes. O distante interior brejo-santense estava agora interligado à contemporaneidade, não ficando à mercê das sobras surradas de filmes, destinadas como migalhas aos interioranos e isolados cinemas do Brasil.

Construído nos padrões da Metro Goldwyn Meyer, com fachada em relevo, o imponente lugar era o mais festejado ponto de encontro da sociedade.

As pesadas latas de filme viajavam os cerca de quinhentos quilômetros em uma linha de ônibus, chegavam em sacos de estopa, amarrados e etiquetados. 

Este cinema (Cine Rio Negro) guarda algumas semelhanças com o Cine Alvorada

Quando tocava Theme from a summer place no sistema de megafones espalhados pelo comércio, sabia-se que um filme seria anunciado, na inconfundível voz de Zezinho Moreira. Os ouvidos se preparavam atentos: 

- Hoje à noite, o Cine Alvorada exibe o clássico Casablanca, com Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. 

Ir ao cinema era uma festa. Arrumava-se e perfumava-se, porque ver um filme tinha status de festa. Antes, já de ingressos comprados, os espectadores aguardavam nas imediações do cinema ou na praça principal, logo à esquina,  onde se esperava o primeiro toque da sirene, ouvido em toda a cidade, anunciando a proximidade da sessão. 

Devidamente sentados naquela “nave espacial”, cada passageiro daquele voo de 204 cadeiras contava ansiosos minutos, para que as cortinas de veludo vermelho se abrissem e as luzes se apagassem. Depois, batidas de um gongo reverberavam. Da sala de projeção, Roque abria a luz do projetor, comandando a mágica viagem. Piloto competente, orgulhava-se de ter sido treinado no majestoso Cine São Luiz, de Fortaleza. Se uma fita quebrava, estava ele a postos para corrigir, no tempo mais breve, aquela turbulência, antes que os espectadores se entediassem. Esses pedaços de fita seriam disputados mais tarde pela meninada mais sortuda, que os guardaria como tesouro caro.

Clássicos, épicos, dramas, faroestes espaguetes, títulos italianos e filmes nacionais da Cinelândia e da pornochanchada davam a tônica do quanto o Cine Alvorada era eclético; mas também, sem dúvida pelo conhecimento aprofundado de Benoni, muitos filmes do hoje chamado gênero “cult” marcaram aquela vasta lista, como por exemplo "O Discreto Charme da Burguesia" (Le Charme Discret de la Bourgeoisie, FRA/1972) de Luis Buñuel e "Os Meninos" (Quien Puede Matar a un Niño?, ESP/1976) de Narciso Ibáñez Serrador. 

Vítima de processo de desprestígio, causado pelo advento da televisão, que pouco a pouco foi se popularizando, o Cine Alvorada entrou em decadência no final dos anos 70, até que, carcomido pelos cupins, seu teto veio abaixo, entre os primeiros anos da década de 80. Do lugar, nem fotografias restaram. 

Em 1995, Benoni nos deixou, após se submeter a uma cirurgia na cabeça. A sociedade brejo-santense sentiu com pesar a morte do seu grande intelectual, respeitado cidadão. É importante lembrar que ele ocupara cargo de vereador, assim como exerceu importantes funções públicas, como tesoureiro e secretário de educação e cultura do município. 

Socorro Araújo e o saudoso crítico de cinema Rubens Ewald Filho.

Em 2000, Socorro Araújo, sobrinha de Benoni e Roque, recordando memórias do cinema de sua infância e adolescência - onde, inclusive, trabalhou na bilheteria - publicou Tão Longe de Rosenheim, uma série de ensaios poéticos sobre filmes de sua vida. Na sua apresentação, ela relembra: “Ainda trago uma recordação muito vívida daquela época: um cartaz de um filme, ‘Caminhando sob a chuva de Primavera’, exposto no pequeno escritório do Cine Alvorada. Aquela imensa fotografia de Ingrid Bergman e Anthony Quinn andando sob uma chuva fina transportava-me para um mundo de fantasias. Aquele cartaz desbotado era meu troféu e meu sonho. Tudo o que me cercava tinha o encanto e o brilho dos filmes de Hollywood. Foi um tempo de noites encantadoras (…) Recordo-me, agora, de Cine Paradiso. Igual a Totó, o garotinho do filme de Giuseppe Tornatore, também tive um Alfredo em minha vida. Meu tio Benoni despertou em mim a verdadeira paixão pelo cinema. Pouco antes de falecer, ele me disse que estava 'voltando a ser menino'. Queria rever os filmes de sua infância e me pediu para conseguir cópias de '13 Rua Madeleine', 'À Noite Sonhamos' e 'Dois Contra uma Cidade Inteira'. Tio Benoni morreu sem conseguir assistir novamente aos filmes de sua juventude. Outro dia, sonhei com ele, de braços dados com Fred Astaire, cantando Cheek to Cheek. Mas foi apenas um sonho. Acho que ele queria me dizer que estava em boa companhia." 

Em 2014, a sala de cinema do Núcleo de Arte e Cultura de Brejo Santo foi batizada com o nome de Benoni Anselmo. 

Neste ano de 2020, Roque, pioneiro piloto da mágica nave dos sonhos felizes, também nos deixou, vítima da COVID-19. 

Roque Anselmo de Araújo

Brejo Santo não teve mais um cinema permanente, porém o Cine Alvorada permanece vivo, porque suas histórias são eternas, pintadas com a tinta da saudade, seladas pelo verniz da poesia. 


Hérlon Fernandes Gomes, 05 de Novembro de 2020 - Porto Velho, Rondônia.


Em memória de Benoni e Roque Anselmo, com preito de gratidão. A família Anselmo de Araújo esteve sempre engajada com tudo o que se dissesse respeito à Sétima Arte no município de Brejo Santo.

Para Geraldo Willian, irmão mais novo de Benoni e Roque, num mar de saudades.

Aos meus pais, Sebastião e Tôta, que sempre me encheram de curiosidades com histórias do Cine Alvorada.

Para Socorro Araújo e Elisabete Martins, que mesmo à distância dividiram comigo maravilhosas lembranças vividas.


5 comentários:

  1. Herlon que maravilha de texto... felizmente fui um daqueles garotos (...Esses pedaços de fita seriam disputados mais tarde pela meninada mais sortuda, que os guardaria como tesouro caro,), que juntava os pedaços das fitas e inventava de projetar em casa. (Wilson)

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  2. Lindo texto Herlin... Justa homenagem aos irmãos Anselmo de Araújo...

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  3. Saudações ao leitores do blog! Em especial aos apaixonados por cinema, que devem ter se emocionado, como estou, com o texto de Hérlon. Como sou um pouquinho mais velho que o autor, ainda tive a chance de ver o Cine Alvorada funcionando. Os trapalhões na Serra Pelada foi minha primeira experiência em uma sala de cinema. Lembro de estar sentado à espera do filme começar. Sala lotada! Muitos risos. Ainda trago comigo esse instante. Jamais se apagará, revivo a cada vez que entro em uma sala de exibição. Parabéns pela iniciativa de homenagear o pioneirismo de Benoni e Roque.
    Sempre me perguntei para onde iria se pudesse voltar no tempo. Agora tenho a resposta. Assistiria a “O discreto charme da burguesia” no Cine Alvorada, em Brejo Santo. Acho que ficarei pensando nisso por um tempo.
    Um abraço.
    P.S.: de fato, a foto que você encontrou, do Cine Brasil, em Porto Velho, é tão parecida com o interior do Cine Alvorada, que cheguei a esboçar um suspiro, pois lamento muito não termos fotografias preservadas do nosso cinema.

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