A Munganga Promoção Cultural

A MUNGANGA PROMOÇÃO CULTURAL: O Brejo é Isso!

sábado, 28 de setembro de 2019

OTACÍLIO ANSELMO E SILVA - 110 ANOS


Muitas dúvidas pairavam acerca da naturalidade de Otacílio. Alguns o davam, por certo, brejo-santense; outros, cratense; ouvimos, por fim, que se tratava de jatiense, o que nos foi confirmado em documento deixado pelo próprio autor, no seu discurso de posse no Instituto Cultural do Cariri:

“Com efeito, nasci e dei meus primeiros passos no antigo povoado de Macapá, hoje cidade de Jati, quando aquela pequena povoação, banhada pelo riacho dos Porcos e vizinha de Pernambuco, era parte integrante do Município de Jardim.”

Era o dia 09 de Dezembro de 1909. Cresceu e realizou seus primeiros estudos em Brejo Santo, onde o pai era um afamado boticário. A farmácia de João Anselmo e Silva era, com efeito, o reduto da intelectualidade daquela época, local onde o cidadão se mantinha informado do que acontecia no Cariri e no mundo. 

Contemporâneo de importantes acontecimentos históricos, Otacílio Anselmo foi um cronista do seu tempo e das memórias deixadas na infância de um menino sertanejo, do sul do Cariri.

Seguiu carreira militar, destacando-se na música, integrando a Banda de Música do 23º Batalhão de Caçadores, em Fortaleza. Ali,  foi colega de Luiz Gonzaga -  o Rei do Baião. Em 1935, fundou, na capital, o tradicional bloco carnavalesco Prova de Fogo.

De volta ao Cariri, como capitão reformado do Exército Brasileiro, ocupou a cadeira de n. 7 do Instituto Cultural do Cariri, onde passou a se dedicar ao estudo da História da região, contribuindo incansavelmente em publicações da Revista Itaytera. Nesta, em 1956, escreveu o Esboço Histórico do Município de Brejo Santo. Nele, remonta desde a ocupação dos índios Cariris; a chegada do homem branco, perpassando pelo cangaceirismo da era imperial até a ascensão do coronelismo, no início do século XX, configurando-se em um importante registro da história, não só do município, mas de toda a região. É, sem dúvida, o registro de maior relevância, até hoje, para a cidade. Todas as obras vindouras necessariamente passaram, e hão de passar, pelas anotações deixadas por Otacílio.

Narrando sua própria experiência, o autor escreveu, em 1957, a obra O Ceará e a Revolução de 30.

Sua obra mais importante, publicada em 1968, Padre Cícero: Mito e Realidade, demorou oito anos para ser concluída e é leitura obrigatória sobre a polêmica do famoso milagre envolvendo o líder religioso, além de como se deram determinadas relações políticas no Cariri daquele tempo. 
Otacílio discursa no lançamento da biografia Padre Cícero: Mito e Realidade (1968)

Nessa famosa biografia, panorama dos problemas sociais do sertão, latifúndio,  fé e banditismo,  o autor comunga do mesmo entendimento do historiador brejo-santense Padre Antônio Gomes de Araújo, autor de O Apostolado do Embuste (1956), obra contestadora do milagre de Juazeiro e acusadora dos responsáveis. 

Otacílio defende que o aludido milagre foi, na verdade, uma armação, um truque químico engendrado pelo professor José Marrocos, íntimo amigo do padre Cícero. A alarmada hóstia em sangue, na boca da beata Maria de Araújo seria, na verdade, uma mistura de amido, saliva e fenolftaleína, dissolvendo-se rubra, na língua.

Embora não seja uma obra definitiva sobre os acontecimentos – afinal, como ser definitivo em assunto que mexe tanto com a fé? -, o olhar de Otacílio sobre os acontecimentos trouxe um paradigma para que autores como Azarias Sobreira, Daniel Walker e Lira Neto, complementassem outras peças desse enigmático quebra-cabeças que é a figura desse líder religioso.

Em 1972, rememorando histórias do velho sul do Cariri, o autor publica na Revista Itaytera, A Tragédia de Guaribas (1972), texto de profundo cuidado histórico, em que explora a política, o banditismo, o cangaceirismo e as feições do ineficiente Estado, que culminam com a morte do famoso Chico Chicote, em sua fazenda Guaribas, no ano de 1927, quando cerca de 300 homens, compostos pela polícia de três estados, reuniram-se para dar cabo do poderoso coronel.



Otacílio Anselmo faleceu em 08 de janeiro de 1982. Está sepultado no Cemitério da Paz, em Fortaleza

Hérlon Fernandes Gomes

P.S.: Salvo engano, o Poder Legislativo de Brejo Santo carece de prestar merecida homenagem a Otacílio Anselmo. Não conheço nenhum nome de logradouro, ou biblioteca, algo que valha a inscrição de tão importante pessoa para nossa História.

Agradecimentos a Bruno Yacub e Antônio Marrocos Anselmo, neto de Otacílio Anselmo.

domingo, 22 de setembro de 2019

O CRUZEIRO DO SERROTE E O CEMITÉRIO DOS FLAGELADOS



O Cruzeiro do Serrote está erguido desde 1942.

Compondo o complexo histórico popular do entorno da Pedra do Urubu, está erigido o Cruzeiro, fincado no ponto mais alto do Serrote, desde 1942.

Idealizada por dona Balbina Lídia Viana Arrais - A Mestra, para além do pagamento de uma graça alcançada, foi um incentivo aos paroquianos às peregrinações, a fim de devotarem sua fé ou de fazerem penitência por ocasião da Quaresma. Até encenação da Via Sacra era realizada no local.

Dona Balbina Lídia Viana Arrais - A Mestra.
Foto: acervo de Maria Auriluce Arraes Bezerra.

A tradição oral revela que, com o início das peregrinações, o local também se tornou um “campo santo”, utilizado para sepultamento de pessoas vítimas de epidemias, como a Hanseníase e Varíola. A seca, associada aos aglomerados de pessoas não vacinadas, vivendo em plena falta de higiene, facilitou a disseminação de bactérias e viroses, principalmente em grupos de indivíduos com maiores riscos e vulnerabilidade social, ali na região do Serrote. Por receio de risco de contaminação, não era permitido o sepultamento dos corpos no cemitério São João Batista.

Os recém-nascidos, popularmente chamados de “anjinhos”, também eram sepultados no entorno do Cruzeiro do Serrote, como pagãos (não batizados), pois somente poderiam ser enterradas no cemitério pessoas batizadas pela Igreja. Até o fim da década de 1990, existem relatos de sepultamentos desses "anjinhos".

Visão geral da área do Serrote onde se encontram a Caixa D'água e o Cruzeiro:
Monumentos Históricos do Município. Foto: Thales Luciano.

Foto: Thales Luciano.
Foto: Thales Luciano.

Foto: Thales Luciano.
Foto: Thales Luciano.

Foto: Thales Luciano.

Em conversa com monsenhor Dermival, o Reverendíssimo informou que, desde a sua chegada em Brejo Santo, em 1957, para atuar como Vigário Cooperador de padre Pedro Inácio Ribeiro, a orientação da Diocese, em relação às práticas de sepultamentos, seria para que todos os falecidos fossem enterrados no próprio cemitério local, reservando-se uma área específica para o sepultamento dos ditos “anjinhos”.

Ultimamente, no Cruzeiro do Serrote, realizam-se manifestações religiosas esporádicas, como foi a missa celebrada no último dia 14 de setembro de 2019, em devoção à Santa Cruz. Para se ter uma ideia, antes disso, a última missa realizada no local aconteceu há 12 anos.


Peregrinação da Santa Cruz ao Cruzeiro do Serrote, 14 de setembro de 2019.


Registro da Missa celebrada em 14 de setembro de 2019.

Registro da Missa celebrada em 14 de setembro de 2019.

Registro da Missa celebrada em 14 de setembro de 2019.

Registro da Missa celebrada em 14 de setembro de 2019.

Do local, tem-se uma linda vista de todo o Brejo Santo. A luz do sol se espraia por toda a várzea. Os restos de vela sobre as pedras, ao redor do Cruzeiro, são um rastro de fé deixado por anos.

Visão do nascer do sol a partir do Cruzeiro do Serrote, com o Brejo ao fundo.


O Cruzeiro do Serrote tornou-se Patrimônio Histórico do Município de Brejo Santo, através da Lei Municipal n° 480/05, de 28 de junho de 2005.

Conheça outros pontos históricos da cidade tombados através de Leis Municipais:

- A pedra denominada de “Urubu” em um raio de 15m² em circunferência, através da Lei Municipal N° 346/99, de 28 de dezembro 1999;

Visão aérea da Pedra do Urubu e o seu entorno. Foto: Thales Luciano.


- A pedra denominada de “Sapo” em um raio de 15m² em circunferência, através da Lei Municipal N° 346/99, de 28 de dezembro 1999;

Monumento Histórico "Pedra do Sapo".
"Pedra do Sapo" e "Pedra do Urubu".


- A pedra denominada de “Furna da Onça” em um raio de 15m² em circunferência – através da Lei Municipal N° 346/99, de 28 de dezembro 1999;

Monumento Histórico "Furna da Onça".


- A área denominada de “Cacimbinha” em um raio de 15m² em circunferência, através da Lei Municipal N° 346/99, de 28 de dezembro 1999; (DESTRUÍDO)!

Monumento Histórico "Cacimbinha" (DESTRUÍDO).

Monumento Histórico "Cacimbinha" (DESTRUÍDO).

- Caixa d’água localizada no Serrote, erguido em 1953, através da Lei Municipal N° 480/05, de 28 de junho de 2005;

Monumento Histórico da Caixa D'água. 


- O Casarão localizado no final da Avenida coronel Basílio Gomes, ao lado do cemitério São João Batista, erguido em 1908 (construído pelo capitão Antônio Leite Rabelo da Cunha), através da Lei Municipal N° 480/05, de 28 de junho de 2005; (DESTRUÍDO)!

Monumento Histórico Casarão do capitão Antônio Leite Rabelo da Cunha, 1908. DESTRUÍDO!
Foto: Blog do Mateus Silva.

Monumento Histórico Casarão do capitão Antônio Leite Rabelo da Cunha, 1908. DESTRUÍDO!
Foto: Blog do Mateus Silva.


- O Casarão localizado na Avenida coronel Basílio Gomes, cuja construção data de 1872 (residência do Cel. Basílio Gomes da Silva), através da Lei Municipal N° 480/05, de 28 de junho de 2005.

Monumento Histórico Casarão do coronel Basílio Gomes da Silva, construída em 1872.



Lei Municipal N° 346/99, de 28 de dezembro de 1999.
Lei Municipal N° 480/05, de 28 de junho de 2005.

Lei Municipal N° 480/05, de 28 de junho de 2005.


Este texto é dedicado aos amigos Maria Auriluce Arraes Bezerra e João Viana Arraes Neto, descendentes de dona Balbina.




Conheça o seu lugar!
Visite o complexo histórico da Pedra do Urubu, especialmente o seu Museu.





O Brejo é Isso!



Bruno Yacub Sampaio Cabral
Pesquisador



Fontes de pesquisa:

- AMIC – CANAO, Amigos da Cultura – Casarão, Nascença e Outros, Balbina Lídia Viana Arrais – A Mestra, Brejo Santo – CE, 2007;
- Silva, Otacílio Anselmo e Silva, D. Balbina Lídia Vianna Arrais, em revista Itaytera, n° 18, Instituto Cultural do Cariri, Crato - CE, 1974;
- Leite, Maria Santana, Reminiscências, Brejo Santo - CE, 2000;
- Araújo, Francisco Alves, Veredas do Chão Nativo, Brejo Santo - CE, 2003;
- Silva, Otacílio Anselmo e, Esboço Histórico do Município de Brejo Santo, em revista Itaytera, N° 2, Instituto Cultural do Cariri, Crato - CE, 1956;
- Arquivo da Câmara Municipal de Brejo Santo - CE;
- Entrevista com o monsenhor Dermival de Anchieta Gondim em 16 de setembro de 2019;
- Entrevista com Maria Auriluce Arraes Bezerra, em 16 e 17 de setembro de 2019;
- Entrevista com o diácono Raimundo Tarcísio Cabral, em 19 de setembro de 2019;
- Entrevista com Tony Santos (Tony da Pedra do Urubu), em 20 de setembro de 2019.


Links de artigos sobre Dona Balbina:

Dona Balbina Lídia Viana Arrais

Balbina Lídia Viana Arrais

A primeira Professora pública de Brejo Santo

Lançamento do Livro "Balbina Lídia Viana Arrais - A Mestra"

O Casarão da Família Viana Arrais

O Casarão dos Viana Arrais, um lar de saberes e ensinamentos

sábado, 7 de setembro de 2019

A PEDRA BRANCA


Hérlon Fernandes Gomes revela capítulo de seu romance, em que a cidade de Porteiras aparece em lugar de destaque. O livro contará a história de Chico Chicote, o poderoso coronel de Guaribas, que  foi vítima de um complô do Governo e de seus inimigos, em 1927. Cerca de 300 homens se reuniram para trucidá-lo. O seguinte capítulo retrata parte da infância do protagonista.

A Pedra Branca (Google Imagens)

A PEDRA BRANCA ENCANTADA

Naqueles rincões, uma das principais diversões da meninada era ouvir as histórias que os mais velhos contavam, nos alpendres pela noite adentro, regadas a chá de cidreira e capim santo. Algumas, muito inventadas, como as aventuras e espertezas de Camonge, um herói malandro que levava sempre a melhor, enganando homens poderosos, como reis e malfeitores. A criançada gostava de ouvir, também, os ‘causos malassombrados’ acontecidos ali: almas penadas, caiporas que protegiam a mata, menino amaldiçoado que virava lobisomem... Mas aqueles garotos se impressionaram especialmente sobre uma: a história da misteriosa Pedra Branca.
De todo aquele vale do Sul do Cariri, nos limites do povoado de Porteiras, abrindo-se no imenso vale verde que ladeia a Chapada do Araripe, erguia-se aquele monólito cheio de enigmas. De muito longe, parecia uma tosca casa, elevando-se além do verde, já perto das nuvens, para abrigar certamente muitos encantos e magias.
Dizia-se que dentro da Pedra vivia uma família aprisionada. Ninguém sabe que maldição esse povo sofreu, mas é certo que penava lá dentro por algo de mal que lhe botaram. Contavam que na hora do almoço, se a gente pusesse o ouvido rente à pedra, seria possível ouvir o tilintar de colheres nos pratos;  panelas que caiam na cozinha, como se as pessoas estivessem terminando de preparar a comida para servir. Às vezes, era possível ouvir vozes, gritos, risos, lamentos...
Corria a notícia de que uma moça, moradora daquelas vizinhanças, havia sumido recentemente ao avisar em casa que iria visitar a Pedra, mesmo advertida de que não o fizesse. Nunca mais se soube dela. Teria trocado de lugar com algum dos prisioneiros da maldição?
Nas noites de Natal, o velho Janeta e outras pessoas sérias juravam de pé junto que era possível, mesmo de longe, ver subir da Pedra, até o céu, um iluminado carneiro de ouro, em homenagem ao nascimento do Menino Jesus...
Ninguém segura curiosidade de menino. Depois de ouvirem todas aquelas palestras, Chico, Sebastião Cancão e Mané Caipora sabiam que precisavam ver a Pedra Branca de perto, conferir por eles mesmos aquele mistério.
Passaram a semana planejando a viagem. Calcularam por alto a distância e o tempo da, aproveitando o curso do rio. Precisariam de um dia inteiro para ida e volta. Chico Chicote decidiu que seria melhor que fossem no sábado, quando o pai e mãe desceriam para a feira de Brejo e só voltariam à noitinha, assim nem dariam por sua falta.
Otília estranhou o fato de os meninos Mané Caipora e Tião Cancão chegarem tão cedo perguntando por Chico.
- Ainda está dormindo. E o que vocês querem tão cedo aqui? – perguntou, com ar de abuso, porque tinha íntima suspeita de traquinagem braba.
- A gente combinou de ir catar umas muricis hoje cedo, lá no alto, e caçar uns passarim. – Mentiu Caipora, esticando a baladeira em direção à interlocutora. Vou trazer uns arribaçãs pra senhora.
Otília se apiedou daquela promessa de generosidade e ordenou que os meninos entrassem e fossem acordar Chico. Molhou mais massa de milho para aumentar o cuscuz e peneirou mais goma para as tapiocas do café da manhã.
- Oxe, isso é hora de tá dormindo? Levante, Chico. Rumbora, senão vai ficar tarde. Não tem quem aguente esse sol nas costas, não.
Chico pulou da cama, atordoado. Arrumou-se e foi para a cozinha com os amigos. Instruiu-lhes a não deixarem nada de comida na mesa, a levarem tudo para a viagem. Comeram vorazmente, até se fartarem. Chico iniciou um diálogo:
- Otília, vi sua galinha numa tristeza ali pelos cantos, que tô achando que ela tá goguenta!
                O menino se referia a uma ave que era o xodó da senhora, tinha até nome: Mimosa. Chamando por São Francisco de Assis, a mulher saiu apressada da cozinha em busca de averiguar a ardilosa informação. Enquanto isso, os três arrastavam o que fosse de comida e guarneceram seus bornais. Correram para o curral, montaram seus cavalos e partiram para a grande aventura.
Era o ano de 1889, mais um ano de seca. Aquelas crianças ainda não conheciam o que era um inverno de verdade, nunca viram o rio caudaloso como contavam os mais velhos. Anos antes, com chuvas escassas, foi possível vê-lo correr em longo curso, embora com pouca água. Naquele ano, todavia, o leito estava seco, só apresentando água em alguns raros olhos d’água que se abriam tímidos em seu curso. Os mais velhos diziam que tanta seca era sinal dos fins dos tempos. Corria a história da hóstia que virara sangue, na boca de uma das beatas do padre Cícero do Juazeiro. Os meninos conjecturavam sobre essas coisas “do outro mundo”, sobre o fim dos tempos, enquanto passeavam admirados pelas grandes pedras dispostas sobre uma areia infinitamente branca, dentro de um magnífico cânion.
- Pois e se for mesmo o fim do mundo, a gente vai morrer sem conhecer a Pedra Branca? – indagava Chico.
- Meu fi, eu não penso em Pedra Branca, não, quando o assunto é fim do mundo. Eu tenho medo é de fogo, porque quando o mundo se acabou a primeira, foi de água. Falam que agora vai ser o fogo do inferno – rebateu Caipora, parando a marcha para acender um cigarro de palha que lhe valia o apelido, desde os oito anos de idade.
Cancão morria de medo dessas conversas do Apocalipse, não estava gostando da prosa. Tinha medo que alguma alma penada, de repente, aparecesse anunciando alguma desgraça, por isso aconselhou aos amigos:
- Tanta coisa boa pra conversar e vocês só ficam falando em malassombros. Ôs caba besta! Vamos conversar sobre outras coisas...
Depois de longa e estafante caminhada, finalmente era possível ver mais de perto, o imenso monumento natural. Resolveram descansar um pouco antes de reiniciar a subida, que se fazia cada vez mais íngreme. Àquela altura de clima serrano, o tempo se fazia mais ameno e o rio deixava notar cada vez mais algumas nascentes que o alimentavam. Em uma delas, os garotos descobriram um tesouro escondido: um santuário de pedras de peixe. Como qualquer criança crescida ali, eles sabiam identificar perfeitamente aquelas misteriosas espécimes que, quebradas cuidadosamente, ao meio, exibiam diversos tipos de peixes, insetos e outros bichos de quando o Sertão foi mar! Quando se aperceberam daquilo, deram-se àquele alvoroçado garimpo.
- Olhem aqui! Esse peixe aqui parece um chupa-pedra, só que maior e mais feio! – admirava-se Tião Cancão.
Caipora encontrou, na primeira quebrada, um belo “bibiu”, nome que dava à libélula. Chicote descobriu um peixe muito esquisito e brilhante, reto como um punhal. Infelizmente não puderam levar tudo o que desejavam, pois os bornais já estavam pesados demais para enfrentar aquela última subida.
Os meninos chegaram até um platô, uns dez metros abaixo da base da Pedra. Apearam os animais e subiram a pé, único meio encontrado para chegar mais rapidamente ao tão esperado destino. Entre espinhos de cansanção e raízes que serviam de cipó, deram-se, enfim, de frente com a imensa lateral da Pedra.  Uma rasga-mortalha voou do alto, entoando seu canto de agouro. Sebastião Cancão fez o sinal da cruz. Mané Caipora e Chico sentiram o sangue esfriar. Ninguém disse uma palavra. Cigarras despertavam num incessante lamento sem fim, ensurdecendo os ouvidos dos meninos.
Embora o ar se desenhasse numa espécie de fantasmagoria, a sensação reinante era de vitória, satisfação e um êxtase de admiração. Rodearam todo o lugar, à espera de que algo sobrenatural acontecesse.
Chico pôs os olhos no sol, a pino. Era a hora do almoço. Pôs os ouvidos na Pedra em busca de ouvir o que diziam os contadores. Os outros meninos integraram o ritual. Sebastião Cancão alarmou, sem saber ao certo se acreditava no que dizia:
- Eu ouvi uma xícara cair. Juro por Deus!
Cético, Chico Chicote rebateu desapontado:
- Ouviu coisa nenhuma. Eu mesmo não ouvi nada...
- Eu não sei se ouvi alguém cochichando alguma coisa...
Depois de tentativas duvidosas como aquelas. Cancão lembrou que seria muito mais interessante procurar algumas lascas de ouro derrubadas pelo Carneiro do Natal, de cima da Pedra.
Naquela procura vã, chegaram, por fim, à frente da Pedra, onde se abria uma cripta para receber o nascer do dia, como uma porta. Admirados, os meninos adentraram. Não havia grande profundidade. Imaginavam que aquela abertura fosse um túnel, mas equivalia ao tamanho de um pequeno vão, onde facilmente cabia o trio, com folga de espaço. Chico gritou:
- Ô de casa!
O eco reverberou de lá de dentro por sobre o vale, tangendo alguns morcegos e espantando os enxus de maribondos. O trio foi expulso da Pedra, cada um com uma dezena de ferroadas. Rolaram ladeira abaixo, indo cair até bem perto dos animais. Cancão fez troça de Mané Caipora:
- Bicho, óia o tamanho dos teus beiços?
Todos estavam com as fisionomias deformadas pelas picadas. Chico Chicote fez esforço para abrir os olhos. Riram-se uns dos outros. Será que a Pedra não os queria ali, ou tudo foi uma dolorosa coincidência? Não estavam se sentindo bem, era bom que se apressassem em voltar para casa.
Na metade do caminho, uma forte febre se instalou nos garotos, que cavalgavam debilitados. Chico começou a ter delírios. Via a índia velha Araci na frente dos cavalos, como a guiá-los no rumo certo da estrada. Depois o espectro sumia e já estava na garupa do seu cavalo. Em determinado momento perdeu completamente os sentidos e já acordou com o olhar aflito de sua mãe, com um terço na mão a agradecer a Deus porque o pior não acontecera. A febre finalmente havia cessado. A primeira preocupação de Chico foi saber da mãe onde estava seu bornal com as preciosas pedras de peixe.
Continua...
Hérlon Fernandes Gomes


O autor escalando a Pedra Branca em 2009.