Hérlon Fernandes Gomes revela capítulo de seu romance, em que a cidade de Porteiras aparece em lugar de destaque. O livro contará a história de Chico Chicote, o poderoso coronel de Guaribas, que foi vítima de um complô do Governo e de seus inimigos, em 1927. Cerca de 300 homens se reuniram para trucidá-lo. O seguinte capítulo retrata parte da infância do protagonista.
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A Pedra Branca (Google Imagens) |
A PEDRA BRANCA ENCANTADA
Naqueles
rincões, uma das principais diversões da meninada era ouvir as histórias que os
mais velhos contavam, nos alpendres pela noite adentro, regadas a chá de
cidreira e capim santo. Algumas, muito inventadas, como as aventuras e
espertezas de Camonge, um herói malandro que levava sempre a melhor, enganando
homens poderosos, como reis e malfeitores. A criançada gostava de
ouvir, também, os ‘causos malassombrados’ acontecidos ali: almas penadas, caiporas
que protegiam a mata, menino amaldiçoado que virava lobisomem... Mas aqueles
garotos se impressionaram especialmente sobre uma: a história da misteriosa
Pedra Branca.
De todo aquele
vale do Sul do Cariri, nos limites do povoado de Porteiras, abrindo-se no
imenso vale verde que ladeia a Chapada do Araripe, erguia-se aquele monólito
cheio de enigmas. De muito longe, parecia uma tosca casa, elevando-se além do
verde, já perto das nuvens, para abrigar certamente muitos encantos e magias.
Dizia-se que
dentro da Pedra vivia uma família aprisionada. Ninguém sabe que maldição esse
povo sofreu, mas é certo que penava lá dentro por algo de mal que lhe botaram.
Contavam que na hora do almoço, se a gente pusesse o ouvido rente à pedra,
seria possível ouvir o tilintar de colheres nos pratos; panelas que caiam na cozinha, como se as
pessoas estivessem terminando de preparar a comida para servir. Às vezes, era
possível ouvir vozes, gritos, risos, lamentos...
Corria a
notícia de que uma moça, moradora daquelas vizinhanças, havia sumido
recentemente ao avisar em casa que iria visitar a Pedra, mesmo advertida de que
não o fizesse. Nunca mais se soube dela. Teria trocado de lugar com algum dos
prisioneiros da maldição?
Nas noites de Natal,
o velho Janeta e outras pessoas sérias juravam de pé junto que era possível,
mesmo de longe, ver subir da Pedra, até o céu, um iluminado carneiro de ouro,
em homenagem ao nascimento do Menino Jesus...
Ninguém segura
curiosidade de menino. Depois de ouvirem todas aquelas palestras, Chico, Sebastião
Cancão e Mané Caipora sabiam que precisavam ver a Pedra Branca de perto,
conferir por eles mesmos aquele mistério.
Passaram a
semana planejando a viagem. Calcularam por alto a distância e o tempo da,
aproveitando o curso do rio. Precisariam de um dia inteiro para ida e volta.
Chico Chicote decidiu que seria melhor que fossem no sábado, quando o pai e mãe
desceriam para a feira de Brejo e só voltariam à noitinha, assim nem dariam por
sua falta.
Otília
estranhou o fato de os meninos Mané Caipora e Tião Cancão chegarem tão cedo
perguntando por Chico.
- Ainda está dormindo. E o que vocês querem tão cedo aqui? – perguntou,
com ar de abuso, porque tinha íntima suspeita de traquinagem braba.
- A gente combinou de ir catar umas muricis hoje cedo, lá no alto, e
caçar uns passarim. – Mentiu Caipora, esticando a baladeira em direção à
interlocutora. Vou trazer uns arribaçãs pra senhora.
Otília se
apiedou daquela promessa de generosidade e ordenou que os meninos entrassem e
fossem acordar Chico. Molhou mais massa de milho para aumentar o cuscuz e
peneirou mais goma para as tapiocas do café da manhã.
- Oxe, isso é hora de tá dormindo? Levante, Chico. Rumbora, senão vai
ficar tarde. Não tem quem aguente esse sol nas costas, não.
Chico pulou da
cama, atordoado. Arrumou-se e foi para a cozinha com os amigos. Instruiu-lhes a
não deixarem nada de comida na mesa, a levarem tudo para a viagem. Comeram
vorazmente, até se fartarem. Chico iniciou um diálogo:
- Otília, vi sua galinha numa tristeza ali pelos cantos, que tô achando
que ela tá goguenta!
O
menino se referia a uma ave que era o xodó da senhora, tinha até nome: Mimosa. Chamando
por São Francisco de Assis, a mulher saiu apressada da cozinha em busca de
averiguar a ardilosa informação. Enquanto isso, os três arrastavam o que fosse
de comida e guarneceram seus bornais. Correram para o curral, montaram seus
cavalos e partiram para a grande aventura.
Era o ano de
1889, mais um ano de seca. Aquelas crianças ainda não conheciam o que era um
inverno de verdade, nunca viram o rio caudaloso como contavam os mais velhos.
Anos antes, com chuvas escassas, foi possível vê-lo correr em longo curso,
embora com pouca água. Naquele ano, todavia, o leito estava seco, só apresentando
água em alguns raros olhos d’água que se abriam tímidos em seu curso. Os mais
velhos diziam que tanta seca era sinal dos fins dos tempos. Corria a história
da hóstia que virara sangue, na boca de uma das beatas do padre Cícero do
Juazeiro. Os meninos conjecturavam sobre essas coisas “do outro mundo”, sobre o
fim dos tempos, enquanto passeavam admirados pelas grandes pedras dispostas sobre
uma areia infinitamente branca, dentro de um magnífico cânion.
- Pois e se for mesmo o fim do mundo, a gente vai morrer sem conhecer a
Pedra Branca? – indagava Chico.
- Meu fi, eu não penso em Pedra Branca, não, quando o assunto é fim do
mundo. Eu tenho medo é de fogo, porque quando o mundo se acabou a primeira, foi
de água. Falam que agora vai ser o fogo do inferno – rebateu Caipora,
parando a marcha para acender um cigarro de palha que lhe valia o apelido,
desde os oito anos de idade.
Cancão morria de medo dessas
conversas do Apocalipse, não estava gostando da prosa. Tinha medo que alguma
alma penada, de repente, aparecesse anunciando alguma desgraça, por isso
aconselhou aos amigos:
- Tanta coisa boa pra conversar e vocês só ficam falando em
malassombros. Ôs caba besta! Vamos conversar sobre outras coisas...
Depois de
longa e estafante caminhada, finalmente era possível ver mais de perto, o
imenso monumento natural. Resolveram descansar um pouco antes de reiniciar a
subida, que se fazia cada vez mais íngreme. Àquela altura de clima serrano, o
tempo se fazia mais ameno e o rio deixava notar cada vez mais algumas nascentes
que o alimentavam. Em uma delas, os garotos descobriram um tesouro escondido:
um santuário de pedras de peixe. Como qualquer criança crescida ali, eles sabiam
identificar perfeitamente aquelas misteriosas espécimes que, quebradas
cuidadosamente, ao meio, exibiam diversos tipos de peixes, insetos e outros
bichos de quando o Sertão foi mar! Quando se aperceberam daquilo, deram-se
àquele alvoroçado garimpo.
- Olhem aqui! Esse peixe aqui parece um chupa-pedra, só que maior e
mais feio! – admirava-se Tião Cancão.
Caipora
encontrou, na primeira quebrada, um belo “bibiu”,
nome que dava à libélula. Chicote descobriu um peixe muito esquisito e
brilhante, reto como um punhal. Infelizmente não puderam levar tudo o que
desejavam, pois os bornais já estavam pesados demais para enfrentar aquela
última subida.
Os meninos
chegaram até um platô, uns dez metros abaixo da base da Pedra. Apearam os
animais e subiram a pé, único meio encontrado para chegar mais rapidamente ao
tão esperado destino. Entre espinhos de cansanção e raízes que serviam de cipó,
deram-se, enfim, de frente com a imensa lateral da Pedra. Uma rasga-mortalha voou do alto, entoando seu
canto de agouro. Sebastião Cancão fez o sinal da cruz. Mané Caipora e Chico
sentiram o sangue esfriar. Ninguém disse uma palavra. Cigarras despertavam num
incessante lamento sem fim, ensurdecendo os ouvidos dos meninos.
Embora o ar se
desenhasse numa espécie de fantasmagoria, a sensação reinante era de vitória,
satisfação e um êxtase de admiração. Rodearam todo o lugar, à espera de que
algo sobrenatural acontecesse.
Chico pôs os
olhos no sol, a pino. Era a hora do almoço. Pôs os ouvidos na Pedra em busca de
ouvir o que diziam os contadores. Os outros meninos integraram o ritual.
Sebastião Cancão alarmou, sem saber ao certo se acreditava no que dizia:
- Eu ouvi uma xícara cair. Juro por Deus!
Cético, Chico Chicote rebateu
desapontado:
- Ouviu coisa nenhuma. Eu mesmo não ouvi nada...
- Eu não sei se ouvi alguém cochichando alguma coisa...
Depois de
tentativas duvidosas como aquelas. Cancão lembrou que seria muito mais
interessante procurar algumas lascas de ouro derrubadas pelo Carneiro do Natal,
de cima da Pedra.
Naquela
procura vã, chegaram, por fim, à frente da Pedra, onde se abria uma cripta para
receber o nascer do dia, como uma porta. Admirados, os meninos adentraram. Não
havia grande profundidade. Imaginavam que aquela abertura fosse um túnel, mas
equivalia ao tamanho de um pequeno vão, onde facilmente cabia o trio, com folga
de espaço. Chico gritou:
- Ô de casa!
O eco
reverberou de lá de dentro por sobre o vale, tangendo alguns morcegos e
espantando os enxus de maribondos. O trio foi expulso da Pedra, cada um com uma
dezena de ferroadas. Rolaram ladeira abaixo, indo cair até bem perto dos
animais. Cancão fez troça de Mané Caipora:
- Bicho, óia o tamanho dos teus beiços?
Todos estavam
com as fisionomias deformadas pelas picadas. Chico Chicote fez esforço para
abrir os olhos. Riram-se uns dos outros. Será que a Pedra não os queria ali, ou
tudo foi uma dolorosa coincidência? Não estavam se sentindo bem, era bom que se
apressassem em voltar para casa.
Na metade do
caminho, uma forte febre se instalou nos garotos, que cavalgavam debilitados.
Chico começou a ter delírios. Via a índia velha Araci na frente dos cavalos,
como a guiá-los no rumo certo da estrada. Depois o espectro sumia e já estava
na garupa do seu cavalo. Em determinado momento perdeu completamente os
sentidos e já acordou com o olhar aflito de sua mãe, com um terço na mão a
agradecer a Deus porque o pior não acontecera. A febre finalmente havia
cessado. A primeira preocupação de Chico foi saber da mãe onde estava seu
bornal com as preciosas pedras de peixe.
Continua...
Hérlon
Fernandes Gomes
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O autor escalando a Pedra Branca em 2009. |