A Munganga Promoção Cultural

A MUNGANGA PROMOÇÃO CULTURAL: O Brejo Isso!

sábado, 7 de setembro de 2019

A PEDRA BRANCA


Hérlon Fernandes Gomes revela capítulo de seu romance, em que a cidade de Porteiras aparece em lugar de destaque. O livro contará a história de Chico Chicote, o poderoso coronel de Guaribas, que  foi vítima de um complô do Governo e de seus inimigos, em 1927. Cerca de 300 homens se reuniram para trucidá-lo. O seguinte capítulo retrata parte da infância do protagonista.

A Pedra Branca (Google Imagens)

A PEDRA BRANCA ENCANTADA

Naqueles rincões, uma das principais diversões da meninada era ouvir as histórias que os mais velhos contavam, nos alpendres pela noite adentro, regadas a chá de cidreira e capim santo. Algumas, muito inventadas, como as aventuras e espertezas de Camonge, um herói malandro que levava sempre a melhor, enganando homens poderosos, como reis e malfeitores. A criançada gostava de ouvir, também, os ‘causos malassombrados’ acontecidos ali: almas penadas, caiporas que protegiam a mata, menino amaldiçoado que virava lobisomem... Mas aqueles garotos se impressionaram especialmente sobre uma: a história da misteriosa Pedra Branca.
De todo aquele vale do Sul do Cariri, nos limites do povoado de Porteiras, abrindo-se no imenso vale verde que ladeia a Chapada do Araripe, erguia-se aquele monólito cheio de enigmas. De muito longe, parecia uma tosca casa, elevando-se além do verde, já perto das nuvens, para abrigar certamente muitos encantos e magias.
Dizia-se que dentro da Pedra vivia uma família aprisionada. Ninguém sabe que maldição esse povo sofreu, mas é certo que penava lá dentro por algo de mal que lhe botaram. Contavam que na hora do almoço, se a gente pusesse o ouvido rente à pedra, seria possível ouvir o tilintar de colheres nos pratos;  panelas que caiam na cozinha, como se as pessoas estivessem terminando de preparar a comida para servir. Às vezes, era possível ouvir vozes, gritos, risos, lamentos...
Corria a notícia de que uma moça, moradora daquelas vizinhanças, havia sumido recentemente ao avisar em casa que iria visitar a Pedra, mesmo advertida de que não o fizesse. Nunca mais se soube dela. Teria trocado de lugar com algum dos prisioneiros da maldição?
Nas noites de Natal, o velho Janeta e outras pessoas sérias juravam de pé junto que era possível, mesmo de longe, ver subir da Pedra, até o céu, um iluminado carneiro de ouro, em homenagem ao nascimento do Menino Jesus...
Ninguém segura curiosidade de menino. Depois de ouvirem todas aquelas palestras, Chico, Sebastião Cancão e Mané Caipora sabiam que precisavam ver a Pedra Branca de perto, conferir por eles mesmos aquele mistério.
Passaram a semana planejando a viagem. Calcularam por alto a distância e o tempo da, aproveitando o curso do rio. Precisariam de um dia inteiro para ida e volta. Chico Chicote decidiu que seria melhor que fossem no sábado, quando o pai e mãe desceriam para a feira de Brejo e só voltariam à noitinha, assim nem dariam por sua falta.
Otília estranhou o fato de os meninos Mané Caipora e Tião Cancão chegarem tão cedo perguntando por Chico.
- Ainda está dormindo. E o que vocês querem tão cedo aqui? – perguntou, com ar de abuso, porque tinha íntima suspeita de traquinagem braba.
- A gente combinou de ir catar umas muricis hoje cedo, lá no alto, e caçar uns passarim. – Mentiu Caipora, esticando a baladeira em direção à interlocutora. Vou trazer uns arribaçãs pra senhora.
Otília se apiedou daquela promessa de generosidade e ordenou que os meninos entrassem e fossem acordar Chico. Molhou mais massa de milho para aumentar o cuscuz e peneirou mais goma para as tapiocas do café da manhã.
- Oxe, isso é hora de tá dormindo? Levante, Chico. Rumbora, senão vai ficar tarde. Não tem quem aguente esse sol nas costas, não.
Chico pulou da cama, atordoado. Arrumou-se e foi para a cozinha com os amigos. Instruiu-lhes a não deixarem nada de comida na mesa, a levarem tudo para a viagem. Comeram vorazmente, até se fartarem. Chico iniciou um diálogo:
- Otília, vi sua galinha numa tristeza ali pelos cantos, que tô achando que ela tá goguenta!
                O menino se referia a uma ave que era o xodó da senhora, tinha até nome: Mimosa. Chamando por São Francisco de Assis, a mulher saiu apressada da cozinha em busca de averiguar a ardilosa informação. Enquanto isso, os três arrastavam o que fosse de comida e guarneceram seus bornais. Correram para o curral, montaram seus cavalos e partiram para a grande aventura.
Era o ano de 1889, mais um ano de seca. Aquelas crianças ainda não conheciam o que era um inverno de verdade, nunca viram o rio caudaloso como contavam os mais velhos. Anos antes, com chuvas escassas, foi possível vê-lo correr em longo curso, embora com pouca água. Naquele ano, todavia, o leito estava seco, só apresentando água em alguns raros olhos d’água que se abriam tímidos em seu curso. Os mais velhos diziam que tanta seca era sinal dos fins dos tempos. Corria a história da hóstia que virara sangue, na boca de uma das beatas do padre Cícero do Juazeiro. Os meninos conjecturavam sobre essas coisas “do outro mundo”, sobre o fim dos tempos, enquanto passeavam admirados pelas grandes pedras dispostas sobre uma areia infinitamente branca, dentro de um magnífico cânion.
- Pois e se for mesmo o fim do mundo, a gente vai morrer sem conhecer a Pedra Branca? – indagava Chico.
- Meu fi, eu não penso em Pedra Branca, não, quando o assunto é fim do mundo. Eu tenho medo é de fogo, porque quando o mundo se acabou a primeira, foi de água. Falam que agora vai ser o fogo do inferno – rebateu Caipora, parando a marcha para acender um cigarro de palha que lhe valia o apelido, desde os oito anos de idade.
Cancão morria de medo dessas conversas do Apocalipse, não estava gostando da prosa. Tinha medo que alguma alma penada, de repente, aparecesse anunciando alguma desgraça, por isso aconselhou aos amigos:
- Tanta coisa boa pra conversar e vocês só ficam falando em malassombros. Ôs caba besta! Vamos conversar sobre outras coisas...
Depois de longa e estafante caminhada, finalmente era possível ver mais de perto, o imenso monumento natural. Resolveram descansar um pouco antes de reiniciar a subida, que se fazia cada vez mais íngreme. Àquela altura de clima serrano, o tempo se fazia mais ameno e o rio deixava notar cada vez mais algumas nascentes que o alimentavam. Em uma delas, os garotos descobriram um tesouro escondido: um santuário de pedras de peixe. Como qualquer criança crescida ali, eles sabiam identificar perfeitamente aquelas misteriosas espécimes que, quebradas cuidadosamente, ao meio, exibiam diversos tipos de peixes, insetos e outros bichos de quando o Sertão foi mar! Quando se aperceberam daquilo, deram-se àquele alvoroçado garimpo.
- Olhem aqui! Esse peixe aqui parece um chupa-pedra, só que maior e mais feio! – admirava-se Tião Cancão.
Caipora encontrou, na primeira quebrada, um belo “bibiu”, nome que dava à libélula. Chicote descobriu um peixe muito esquisito e brilhante, reto como um punhal. Infelizmente não puderam levar tudo o que desejavam, pois os bornais já estavam pesados demais para enfrentar aquela última subida.
Os meninos chegaram até um platô, uns dez metros abaixo da base da Pedra. Apearam os animais e subiram a pé, único meio encontrado para chegar mais rapidamente ao tão esperado destino. Entre espinhos de cansanção e raízes que serviam de cipó, deram-se, enfim, de frente com a imensa lateral da Pedra.  Uma rasga-mortalha voou do alto, entoando seu canto de agouro. Sebastião Cancão fez o sinal da cruz. Mané Caipora e Chico sentiram o sangue esfriar. Ninguém disse uma palavra. Cigarras despertavam num incessante lamento sem fim, ensurdecendo os ouvidos dos meninos.
Embora o ar se desenhasse numa espécie de fantasmagoria, a sensação reinante era de vitória, satisfação e um êxtase de admiração. Rodearam todo o lugar, à espera de que algo sobrenatural acontecesse.
Chico pôs os olhos no sol, a pino. Era a hora do almoço. Pôs os ouvidos na Pedra em busca de ouvir o que diziam os contadores. Os outros meninos integraram o ritual. Sebastião Cancão alarmou, sem saber ao certo se acreditava no que dizia:
- Eu ouvi uma xícara cair. Juro por Deus!
Cético, Chico Chicote rebateu desapontado:
- Ouviu coisa nenhuma. Eu mesmo não ouvi nada...
- Eu não sei se ouvi alguém cochichando alguma coisa...
Depois de tentativas duvidosas como aquelas. Cancão lembrou que seria muito mais interessante procurar algumas lascas de ouro derrubadas pelo Carneiro do Natal, de cima da Pedra.
Naquela procura vã, chegaram, por fim, à frente da Pedra, onde se abria uma cripta para receber o nascer do dia, como uma porta. Admirados, os meninos adentraram. Não havia grande profundidade. Imaginavam que aquela abertura fosse um túnel, mas equivalia ao tamanho de um pequeno vão, onde facilmente cabia o trio, com folga de espaço. Chico gritou:
- Ô de casa!
O eco reverberou de lá de dentro por sobre o vale, tangendo alguns morcegos e espantando os enxus de maribondos. O trio foi expulso da Pedra, cada um com uma dezena de ferroadas. Rolaram ladeira abaixo, indo cair até bem perto dos animais. Cancão fez troça de Mané Caipora:
- Bicho, óia o tamanho dos teus beiços?
Todos estavam com as fisionomias deformadas pelas picadas. Chico Chicote fez esforço para abrir os olhos. Riram-se uns dos outros. Será que a Pedra não os queria ali, ou tudo foi uma dolorosa coincidência? Não estavam se sentindo bem, era bom que se apressassem em voltar para casa.
Na metade do caminho, uma forte febre se instalou nos garotos, que cavalgavam debilitados. Chico começou a ter delírios. Via a índia velha Araci na frente dos cavalos, como a guiá-los no rumo certo da estrada. Depois o espectro sumia e já estava na garupa do seu cavalo. Em determinado momento perdeu completamente os sentidos e já acordou com o olhar aflito de sua mãe, com um terço na mão a agradecer a Deus porque o pior não acontecera. A febre finalmente havia cessado. A primeira preocupação de Chico foi saber da mãe onde estava seu bornal com as preciosas pedras de peixe.
Continua...
Hérlon Fernandes Gomes


O autor escalando a Pedra Branca em 2009.


2 comentários:

  1. Sempre muito instigante quando se trata de "estórias" do Ceará. Partindo do Cariri, então, região cheia de magia e imaginários. Quem Lê, vive e viaja junto. Parabéns Hérlon.

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  2. Ler essas linhas me levam a minha infância nas fazendas, onde as lembranças das histórias nos levavam a aventuras como essa. E a prosa totalmente nordestina a torna mais deliciosa na hora de reviver essas memórias.

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