A Munganga Promoção Cultural

A MUNGANGA PROMOÇÃO CULTURAL: O Brejo é Isso!

sexta-feira, 10 de julho de 2020

MEUS ADORÁVEIS PADRINHOS – CRÔNICA DE SAUDADES

Nestes dias de desordem mundial e mental, tenho feito uma terapia eleita por mim mesmo. Considero-a muito eficaz para me recobrar as esperanças. Escolho rever antigas fotografias, dessas que estão em álbuns empoeirados, esquecidos numa gaveta… 

Rever pessoas, com quem convivi e foram ou são inspiradoras de alegria, coragem e esperança, tem o poder de me revigorar. Nessa arqueologia fotográfica, peguei-me com saudades dos meus padrinhos de batismo: Zé e Maria. Eram simples como seus nomes, de origem sagrada. Para mim, de fato, eram pessoas sagradas, porque os padrinhos são o pai e mãe por ordem de Deus. 

José Augusto Frutuoso era um filho do sertão, batalhador - arrimo de família, como se diz. Lavrava a terra, lá pelas bandas do Bezerro e comerciava miçangas na feira livre do Brejo. Conheceu Maria Fernandes , entre olhares pela praça e na missa, nas passagens pela Rua do Juá, onde ela residia com seus pais e no comércio de secos e molhados de Seu Zé Milagres, homem bruto e de respeito. Foi pedir Maria em namoro. Seu Zé e Dona Hosana consentiram, com muito gosto aquela união. Respeitavam a obstinação do pretenso genro em vencer na vida.

Casados, iniciaram a construção do seu projeto de vida. O primeiro filho não vinga e torna-se um anjo no céu, tão logo nasce. A segunda filha, Neuma, vem ao mundo com sérias complicações de saúde, em virtude de uma má formação, semelhante à que ceifara a vida do primogênito. Dr. Cleidson era um jovem e talentoso médico, que atendia os aflitos pais: 

- O prognóstico da menininha não é nada bom. Eu poderia arriscar uma cirurgia para salvá-la, mas não posso garantir que consiga; entretanto, devo assegurar-lhes que, se ela escapar, nunca conseguirá andar. 

Tia Maria com Neuma, à esquerda. São Paulo. Fim dos anos 60.
Como se espera de um pai e de uma mãe, sem titubear, Zé abre a ordem: 

- Faça a cirurgia, doutor. Estamos aqui atrás é de solução. 

A menina escapou e, de fato, a previsão do médico foi bem precisa: era um caso de paraplegia irreversível. Ter uma criança especial nos dias de hoje já é um desafio, imaginem isso nos anos 60? Iniciava-se uma grande luta em prol daquela criança. 

Naqueles anos, Zé resolveu mudar de ramo e abriu um bar. O Frutuoso Bar fez fama em Brejo Santo. Localizado ali entre a Travessa José Clementino Tavares, esquina com a Caldeira do Inferno, ao lado da Barbearia Dois Irmãos, de João e Sebastião, nasceu um dos pontos mais efervescentes da boemia de Brejo Santo. O bar funcionava dia e noite, aproveitando o movimento do comércio e reunindo aqueles que buscavam o aconchego de um boteco, onde havia um gostoso tira-gosto, boa música e a presença serena do anfitrião. Com a boa freguesia, os negócios prosperaram. 


Zé conhecia cada freguês e seu bar era um reduto de harmonia. No tempo em que andar armado era natural, para evitar confusão, antes de começar a bebedeira, Zé exigia que lhe entregassem a arma para ser guardada, a fim de evitar que o álcool e os ânimos acabassem por gestar alguma tragédia. Havia noites em que, debaixo do balcão, havia um arsenal que faria inveja a Lampião! Nem sempre ele entregava a arma no mesmo dia e essa função de “bar man” e delegado deu muito certo: não há notícias de tragédias por lá. 



O bar também se tornaria uma afamada sorveteria da cidade, por seus cobiçados picolés e sorvetes da Kibon e da Maguary, além de uma sortida bomboniere. 

Com melhores condições, Zé e Maria resolveram rumar para São Paulo, ouvir a opinião de outros médicos e em busca de melhor qualidade de vida para a filha paralítica, com constantes complicações no seu quadro de saúde. 

Entre idas e vidas a Fortaleza, São Paulo e Rio de Janeiro e um histórico de várias cirurgias, fizeram o que estava ao seu alcance. Mesmo sabendo que o destino da filha era a cadeira de rodas e, a despeito de todas as outras desesperanças que lhes apareciam agourando a vida da pequena, ganharam aquele mundo de incertezas, em busca de melhoras, na garantia da esperança, sem se preocupar com o insucesso. 



Nessa procura, foram muito felizes, vivendo cada dia, colhendo nas imperceptíveis horas os frutos da felicidade. 



Num tempo em que não se falava em inclusão escolar, Neuminha foi alfabetizada em casa, por professora particular. Não lhe faltaram educação, instrução; nem muito menos amor e cuidados. 


A vida legou ao casal mais quatro filhos vivos: Lêda, Jackson, Jairo e Janaína. É que por último, o seu caçula, Jânio, receberia o chamado de Deus, em 1974. 

Aqueles cinco filhos foram o projeto de vida do casal. A labuta diária e os empreendimentos construídos visavam principalmente a um plano: a boa educação deles. 


- O estudo é o maior recurso que os pais podem deixar para um filho! - dizia frequentemente, o meu padrinho. 

Nessa ânsia, qualquer vendedor de livros sabia que um cliente certo era Zé Frutuoso. A casa possuía, na sala, uma grande estante de madeira, com livros em todos os compartimentos, com dois baús até a tampa lotados de coleções das mais variadas. Quando descobri a leitura, aquela estante foi, para mim, um tesouro; uma fonte num deserto de infindável sede: Júlio Verne, Monteiro Lobato, livros ilustrados com as histórias de Mary Poppins e tantos outros clássicos que a maturidade iria me garantir consciência para lê-los um dia... 

A casa de tia Maria e “padim” Zé, vizinha de parede da minha casa, tornou-se facilmente um dos lugares onde eu mais me sentia aconchegado. Não só pelos livros, que aprendi a amar; mas pela boa amizade de primos-irmãos e também o carinho maternal de titia, a nos agradar com um afago, um pedaço bom de bolo ou um pires de doce, porque ali não faltavam desses mimos e guloseimas. 

Às vezes, principalmente aos finais de semana, a criançada tinha a sorte de seguir viagem no fusca de padrinho, até o sítio Bezerro, na casa de Dona Expedida, sua mãe - sertaneja simples, que nos recebia com muita alegria. Corríamos atrás de um imenso pé de jatobá, que deixava caído muitos desses frutos exóticos que adorávamos catar e levar para a cidade, para nos fartarmos. Até hoje, quando abro um jatobá, vem-me um filme da infância. 

Meu padrinho era um homem sereno, de palavras certas. Abençoava-me desejando que Deus me fizesse feliz e profetizando coisas boas sobre o meu futuro, quando eu era apenas um menino: 

- Você vai ser um doutor advogado importante! 

Eu achava graça daquilo, mas torcia para que ele tivesse razão a esse respeito. Deveria ser algo bom, se ele estava dizendo. 

Padrinho Zé não viveu para me ver formado. Naquele triste final do ano 2000, ele se foi, deixando viva a memória do seu caráter. Quis a vida ser justa para lhe dar tempo suficiente para assistir às formaturas dos filhos, cada um lapidado como uma joia na sua jornada. Com muita honra e dignidade, seus filhos e filhas são cidadãos de bem, conhecidos por todos nós, testemunhos vivos de seu empenho. Em relação a mim, sua promessa se cumpriria, anos depois, quando me formei em Direito. 

Titia Maria nos deixou há dois anos, em 2018, abrindo um vácuo de sua insubstituível ternura, sua inabalável coragem, força e fé. Partiu num sonho, durante o sono, com o rosário na mão, sem dar trabalho a ninguém, como pedia a Deus. 

Lembrá-los inspira-me. É uma saudade que não me desola. Ela faz a gente crer, de verdade, que as coisas podem melhorar, mesmo diante das piores previsões. 

Olhando essas amareladas fotografias, percebo que vive melhor quem menos lamenta; e que a felicidade é mais essa essência encontrada despercebidamente pela estrada, e não a incerta chegada. 


Hérlon Fernandes Gomes 


Porto Velho, 10 de Julho de 2020. 


Para Neuma, Leda, Jackson, Jairo e Jana, com carinho e saudades.

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