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quarta-feira, 25 de março de 2020

RAIMUNDO CARDOSO DOS SANTOS - O PODEROSO PAJÉ DA VILA DE PORTEIRAS


Panorama da administração pública da vila de Porteiras
 para o ano de 1908.

 
ALMANAK ADMINISTRATIVO, MERCANTIL E
INDUSTRIAL DA CORTE E PROVINCIA
DO RIO DE JANEIRO, setor de Notabilidades, anos de 1908.
Recolhido no site memoria.bn.br,
da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.


    Segundo Joaquim dos Santos, ao confrontar as narrativas orais com registros escritos de época, percebeu em sua publicação "Cruz da Rufina - História e Tradição Oral", que as narrativas condizem com a caracterização de Raimundo Cardoso dos Santos como um coronel que exacerbava seu poder.

    Para o autor, Raimundo Cardoso dos Santos foi um abastado senhor de engenho do Cariri cearense, residente na região serrana do município de Porteiras, no sopé na Chapada do Araripe. Vale ressaltar que a sua família, de origem portuguesa, é considerada contribuinte da formação da sociedade caririense, atuando como povoadores da região, nos séculos XVIII e XIX, obtendo assim prerrogativas sociais, inicialmente no tocante à posse de latifúndios. Naquele contexto, influenciou na formação da hierarquia social do Cariri. Seus descendentes, coronéis de prestígio social, ingressaram na política como Intendentes municipais e Tenentes da Guarda Nacional, como é o caso do próprio Raimundo Cardoso.

    Filho do português Antônio Cardoso, que constituiu uma família possuidora de poder politico e econômico no Cariri, Raimundo Cardoso foi citado no Livro de Nomeação dos Intendentes do Ceará como Intendente da Guarda Nacional em 26 de maio de 1896. Foi reeleito em 1902, governando o município de Porteiras até 1904, quando o termo "Intendente", que representava o administrador público, foi substituído por "Prefeito". No mesmo ano, foi eleito Prefeito de Porteiras, administrando o município sucessivamente até 1915, quando foi deposto por líderes políticos das localidades vizinhas de Brejo dos Santos e Milagres. Pouco tempo depois, através da intercessão de lideranças políticas do Cariri, retornou ao poder.

    O padre Antônio Gomes de Araújo nos apresenta mais informações acerca de Raimundo Cardoso em seu artigo O Magnífico Reitor da Universidade do Ceará: O Tenente-Coronel da Guarda Nacional, Raimundo Cardoso dos Santos era filho do casal Antônio Cardoso dos Santos, mais conhecido como Antonino, e Maria Xavier Bezerra, filha do grande proprietário rural caririense, o coronel Francisco Xavier de Sousa, tronco da família Xavier desta zona e de Salgueiro, em Pernambuco. 

    “De Antonino e sua referida mulher descendem: Coronel Raimundo Cardoso dos Santos, ex-intendente e chefe político de Porteiras, deposto em 1915 pelos Lucenas, de Brejo Santo, associados ao célebre José Inácio do Barro, mas reposto pelo presidente do Estado, Benjamim Barroso; Aristarco Cardoso, ex-prefeito da dita comuna; o já citado juiz Antônio Cardoso dos Santos; Francisco Xavier Saraiva, ex-deputado estadual; o mencionado Joaquim Cardoso dos Santos, Quinco Cardoso; Antônio Xavier Saraiva, médico; José Cardoso de Alencar, bacharel e talentoso advogado, e seus irmãos, Mozart e Odálio, aquele, médico, e este, bacharel.” (ARAÚJO, 1959, p. 14).

    Entretanto, Maria do Socorro Cardoso Xavier, em sua publicação "Cardoso - Troncos e Galhos de um Clã Caririense", afirma que Raimundo Cardoso dos Santos era irmão do coronel José Cardoso dos Santos (Zuza Cardoso), coronel Aristides Cardoso dos Santos e Antônio Cardoso dos Santos “I”. 

    O coronel Raimundo Cardoso tinha fama de ser violento e truculento. O mesmo fez época na vila de Porteiras e suas cercanias. Viveu no limiar entre a Monarquia e República. Conhecido pelas suas proezas e valentia, abusou de poder e crueldade. Viveu na época do apogeu do coronelismo. Mandavam os homens que detinham poder político-econômico e social sobre os demais membros da comunidade. Era o mandonismo político. Este foi uma sequela da República Velha no Brasil. 

    Chefe autoritário da citada vila de Porteiras, na gestão do Conselheiro Antônio Pinto Nogueira Acioly, se aliou politicamente ao padre Cícero Romão Batista, que na época já detinha influência política e religiosa no Cariri. Foi convidado para participar do Pacto dos Coronéis em Juazeiro do Norte, em 04 de outubro de 1911, mas não esteve presente, sendo representado pelo próprio Sacerdote. Caído com o Governo Acioly em 1912, Raimundo Cardoso tomou parte na Sedição de Juazeiro, chefiada por Padre Cícero e Floro Bartolomeu, bafejados por Pinheiro Machado, caudilho da política federal de Hermes da Fonseca. Vitoriosa a sedição, ao qual depôs o presidente do estado Franco Rabelo, Raimundo Cardoso retomou a direção dos destinos de Porteiras, em abril de 1914.

    Com isso, após a sua deposição do cargo de Intendente em Porteiras, o próprio Padre Cícero intercedeu por ele junto ao governo estadual de Benjamim Barroso, ao qual era Vice-Governador.

    Diz-se que a toponímia da cidade de Porteiras, se origina do fato de que nos tempos do mandonismo do coronel Raimundo Cardoso, só entrava na vila com sua autorização. Na realidade, havia uma última porteira de acesso, que separava a zona canavieira da área pastoril. 

    Também segundo a tradição oral, o coronel Raimundo Cardoso mandava aplicar supositório de pimenta nos seus desafetos. Mandava capar os seus inimigos e o capador, o cangaceiro Cobra Preta, dizia as suas vitimas: “Vai ter nada não! Eu tenho mão boa!” O coronel Raimundo Cardoso era homem de muitos capangas e costumava ir em auxilio de coronéis, seus amigos e parceiros de arbitrariedades, levando sequazes. 

    É típico, nesse tocante, um depoimento do coronel Raimundo Cardoso dos Santos, em conversa com o Dr. Alípio Baltar, Juiz de Direito de Jardim, e com o Dr. Paulo Pedro de Moura Montenegro, Promotor de Justiça da mesma Comarca, dizia. “- Quando cheguei a Porteiras, havia mais de cem mulheres da vida. Cabras faziam desordens. Resolvi estabelecer a ordem. Passei a fazer o policiamento com os meus cabras. Algum tempo depois, um dos meus homens de confiança comunicou-me que os cabras do coronel fulano provocavam brigas em todas as feiras. Disse-lhe que mantivesse a ordem. Numa das feiras seguintes, estava em casa, quando me avisaram que havia barulho. Não saí, pois, se o fizesse, os meus cabras só agiriam com ordem minha. Preferi que agissem livremente. Na verdade, um cabra do coronel fulano estava alterando a ordem. Um dos meus cabras atirou e o cabra do coronel fulano caiu morto. Agora, meu cabra vai ser julgado. Uma coisa, porém, eu lhes digo, Dr. Juiz e Dr. Promotor, todo cabra que chegar aqui com desordem fica estirado no chão com uma bala.” (MONTENEGRO, 2011, p. 343).

    Possivelmente teve dois filhos. Joaquim Cardoso, mais conhecido como Jacu, teve participação no conflito deflagrado entre os chefes políticos de Porteiras e Brejo dos Santos, em 1915. E uma filha chamada de Dona Pinto. Este nome foi devido ao casamento com o coronel Antônio Pinto de Sá Barreto, ex-deputado estadual e ex-intendente da cidade de Barbalha e que fazia oposição ao Governo do Estado, Nogueira Acioly. Era o ano de 1906 e Antônio Pinto fundara o jornal “O Lutador”, jornal eminentemente político e ficou ligado indelevelmente à política de Jardim por haver acolhido em suas páginas o bravo manifesto político do coronel Napoleão Franco da Cruz Neves, conhecido como coronel Franco de Jardim, este rompido com o governo Acioly. 

    A Dona Pinto além de muito valente, saíra ao pai: era cruel e arbitrária. Saiu da sua cabeça o bárbaro assassinato do alferes Ernesto, que tanto traumatizou Barbalha no passado. O inditoso alferes Ernesto chegou a esconder-se debaixo da saia rodada da sua mulher que, ao ser empurrada pelos cabras de Dona Pinto, descobriu Ernesto que foi ali mesmo trucidado. 

    Como o ser humano não é só alimária, o coronel Raimundo Cardoso dos Santos defendia mulheres ofendidas e desonradas. O homem que desonrasse uma moça e este não reparasse o mal que cometeu, casando-se com a moça ofendida, ele obrigava a casar ou capava o ofensor. Já era conhecido, quando isto ocorria nas redondezas, era chamado a resolver a questão moral. Na verdade, o caso aconteceu com uma neta sua, conforme está descrito no jornal sobralense "A Ordem", edição de 24 de maio de 1917:

    "FORTALEZA, 23 - O individuo Carlito, espanhol, artista patinador do "American Circus", que trabalhou nesta cidade, conseguiu, com habilidade, cativar as atenções de uma filha do falecido deputado estadual, coronel Antônio Pinto de Sá Barreto, chegando a raptá-la da casa paterna. Com a intervenção da polícia efetuou-se o referido casamento.

    Carlito resolveu explorar torpemente a honra de sua esposa, causando este fato a mais viva e justa revolta por parte da família da moça.

    Chamado à Porteiras, neste Estado, por aquela família, para lá seguiu o referido indivíduo conduzindo a sua inditosa vítima.

    Notícias daquela localidade relatam que o Sr. Raimundo Cardoso, avô da esposa de Carlito, depois de ouvir as declarações de sua neta, mandara castrar a macete o aventureiro Carlito, que se acha no Crato, gravemente enfermo."

    Segundo a tradição oral, o coronel Raimundo Cardoso se engraçou por uma jovem que veio trabalhar em uma de suas fazendas, em Porteiras. Vinda de Barbalha, a jovem era bem educada, de cor branca e de cabelos longos. Ela se chamava Rufina. 

    A relação entre Raimundo Cardoso e Rufina logo se tornou um assunto presente nas vozes do povo, que a chamavam de "mulher do mundo". Posteriormente, a esposa do Coronel, não sendo identificada, tomou conhecimento do romance. Com ciúmes e raiva da situação em que se encontrava, por ser uma senhora rica, de família tradicional e possuidora de prestígio frente à sociedade de então, resolveu por fim ao caso amoroso que a envergonhava, mandando assassinar a rival. 

    O coronel Raimundo Cardoso, temendo a ira da esposa e sabendo que sua amante estava grávida, programou sua transferência para outra fazenda sua e ordenou, a um de seus cabras, que a levasse sem que sua esposa tomasse conhecimento. Contudo, ela ficou sabendo do plano de seu marido e ofereceu, ao mesmo cabra que havia recebido as ordens do patrão, certa quantia em dinheiro para que matasse Rufina sem deixar vestígios do crime e, em seguida, desaparecesse daquelas terras. 

    “Ela [Rufina] era uma mulher de vida livre, de um senhor de engenho aqui no pé-da-serra. E a mulher do engenheiro, que o marido dela tava amando a ela... Então, ela [Rufina] tava até grávida dele. Aí ele soube que a mulher ia peitar um cabra pra matar ela. Ele foi, fez uma carga de queijo, de tudo quanto era coisa num burro pra tirar ela pra fora, mas deixa que a mulher peitou o caba pra no caminho matar ela. Num teve jeito, por que o caba já foi mandado do patrão.(...) O patrão mandou deixar ela, mas a mulher disse: - Tu vai deixar, e no caminho tu mata ela, aí vai embora. Aí dobrou o valor do dinheiro e ele matou ela e abriu no mundo.(...) E depois desse desastre ele desapareceu, porque o patrão mandava matar [ele] também.”  (SANTOS, 2011, p. 60).

    Pois bem, indispondo-se com a população dirigente de Brejo dos Santos, ela o depôs, violentamente, pelas armas em 1915, o que ocasionou a intervenção do Governo do Estado, então provisoriamente nas mãos do coronel Benjamim Barroso, que mandou a Brejo dos Santos uma expedição de 500 homens, numa demonstração quase ingenua de força, sob o comando do coronel Ernesto Medeiros.

    O cangaceiro Raimundo Maximiano de Morais, vulgo Mundinho, nascido em Brejo dos Santos, ao ser preso em 1928, foi entrevistado pelo repórter do jornal "O Ceará" e a ele fez a seguinte afirmação: 

    “Pouco depois dessa façanha (referindo-se ao ataque dos colegiados a Porteiras, no início de junho de 1915), quando se encontrava no sitio Guaribas, de propriedade de Chico Chicote, tomou, por duas vezes, parte na defesa daquela propriedade, atacada por forças do governo.” 

    O cabo Galdino, da força expedicionária, violeiro e poeta repentista, cantou nos seguintes versos pessimistas os principais núcleos populacionais daquela zona: 

“Brejo é uma ticaca, 
Milagres, curral de fome; 
Porteiras, pau de desgraças, 
No Macapá não tem homem, 
No Jardim só corre lobisomem.” 

    Sem o disparo dum tiro, o coronel Raimundo Cardoso dos Santos foi reposto no cargo de Intendente de Porteiras. 

    O Cariri foi pacificado. 

    O tenente coronel Raimundo Cardoso dos Santos, “O Poderoso Pajé da vila de Porteiras”, assim noticiado pelo jornal “A Noite”, do Rio de Janeiro, faleceu as 19h00min, do dia 11 de outubro de 1917, no Sítio Crioulos, em Barbalha. Era uma quinta-feira.

    P.S.: A criação do Distrito de Paz de Porteiras data de 09 de agosto de 1858, no termo da vila de Jardim. Sua emancipação política e elevação à categoria de Vila, ocorreu em 17 de agosto de 1889. Sendo desmembrada de Jardim, foi suprimida em agosto de 1920. Foi restaurada pela Lei n° 2002, de 16 de outubro de 1922, sob a denominação de Conceição do Cariri. Foi suprimido novamente por Decreto de 20 de maio 1931 e em divisão administrativa de 1933, figurava como distrito pertencente ao município de Brejo dos Santos. Anos depois, por decreto estadual de 1938, voltou a se chamar Porteiras, e o município de Brejo dos Santos passou a se chamar Brejo Santo.

   Porteiras foi elevada à categoria de município com distrito único em 22 de novembro de 1951, quando foi finalmente desmembrada de Brejo Santo. A divisão territorial, constituída apenas do distrito-sede, permaneceu até 2005, quando foi criado o distrito de Barreiros.


Este texto é dedicado ao Povo de Porteiras, Ceará.


    Por Bruno Yacub Sampaio Cabral 

    Para saber mais sobre a deposição do coronel Raimundo Cardoso dos Santos e o conflito entre Brejo Santo e Porteiras:






Fonte bibliográfica 

- ALMANAK ADMINISTRATIVO, MERCANTIL E INDUSTRIAL DA CORTE E PROVINCIA DO RIO DE JANEIRO, setor de Notabilidades, anos de 1908. Recolhido no site memoria.bn.br, da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro;
- ARAÚJO, Padre Antônio Gomes de; O Magnífico Reitor da Universidade do Ceará; em revista Itaytera, Ano V; N° V; Crato – CE; 1959; 
- ARAÚJO, Padre Antônio Gomes de; Povoamento do Cariri; Obras do Padre Antônio Gomes de Araújo, Vol. 2; Faculdade de Filosofia do Crato; 1973; 
- CABRAL, Bruno Yacub Sampaio; Subsídios para a História de Brejo Santo, Vida e Morte do cangaceiro Raimundo Maximiano de Morais, vulgo Mundinho; em Itaytera; N° 48; Crato – CE; 2019; 
- MACÊDO, Joaryvar; O Império do Bacamarte: uma abordagem sobre o coronelismo no cariri cearense; 3ª Edição; Universidade Federal do Ceará, Casa de José de Alencar, Programa Editorial; Fortaleza – CE; 1998; 
- MONTENEGRO, Abelardo Fernando e Sá, Gildácio Almeida (Organizador); Fanáticos e Cangaceiros; Expressão Gráfica Editora; Fortaleza – CE; 2011; 
- PINHEIRO, Irineu; Efemérides do Cariri; Fortaleza; Imprensa Universitária; 1963;
- SANTOS, Cícero Joaquim dos; No Entremeio dos Mundos: tessituras da morte da rufina na tradição oral; Dissertação (Mestrado), Universidade Estadual do Ceará, Departamento de História; Fortaleza – CE; 2009; 
- SANTOS, Cícero Joaquim dos; Passado Alumiado: representações históricas de porteiras; IMOPEC; Fortaleza – CE; 2011; 
- SANTOS, Cícero Joaquim dos; Cruz da Rufina: história e tradição oral; Curitiba; ; CRV; 2021;
- WALKER, Daniel; Padre Cícero, Lampião e Coronéis: análise da vida política de padre cícero através de dois eventos: outorga da patente de capitão a lampião e o pacto dos coronéis; Expressão Gráfica e Editora; Fortaleza – CE; 2017;
- XAVIER, Maria do Socorro Cardoso; Cardoso: troncos e galhos de um clã caririense; Sal da Terra Editora, João Pessoa – PB; 2009; 
- Jornal “A Noite” (RJ); Anno VII; N° 2.092; 12.10.1917; pág. 04; Recolhido no site memoria.bn.br, da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro;
- Jornal "A Ordem" (CE); Anno 1; N° 38; 24.05.1917; pág. 01; Recolhido no site memoria.bn.br, da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

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