A Munganga Promoção Cultural

A MUNGANGA PROMOÇÃO CULTURAL: O Brejo é Isso!

domingo, 25 de outubro de 2020

CORONEL SIMPLÍCIO PEREIRA DA SILVA E O MASSACRE DOS INDÍGENAS DA CANABRAVA

A alvorada entre as Serras da Canabrava,
à esquerda, e a do Poço, à direita.
Foto: Gui Vieira/ Plancus Photography.

    Este texto tem como base os relatos contados por Helvécio Neves Feitosa e Venício Feitosa Neves, em A Raposa do Pajeú, págs. 102 a 106, lançado em 2018.

    Cariri é a denominação da principal família de línguas indígenas do sertão do Nordeste do Brasil, estando hoje extinta. Algumas vezes caímos no erro ao afirmar que somente existem familiares de tais nativos na região, mas isto não é correto, pois viviam aqui tribos Gê, Tupi, Fulniõ, Taraririú, Caraíba, Quixeréu, Cariú, Cariuané, Calabaça, Icozinho e outras mais. Na maioria das vezes esses grupos entravam em conflitos entre si. Historicamente, os grupos indígenas da região aparecem denominados de modo genérico como Tapuias, podendo ser vinculados ao tronco linguístico Macro-Jê. Não podemos esquecer que estes indígenas eram nômades, estando situados nos melhores sítios, nos lugares mais férteis, e ficavam até o momento em que era favorável para sua sobrevivência. 

    Segundo Thomaz Pompeu Sobrinho, os povos originários conhecidos por Cariris, chegaram ao sul do Ceará entre os séculos IX e X, pois diversas tribos dessa nação habitavam uma vasta área entre a margem esquerda do Rio São Francisco e as vertentes das serras do Araripe e da Ibiapaba, esses últimos, lugares de abundância de caça, de pesca e de frutos, além de incontáveis nascentes que proporcionavam água farta. Esses indígenas, como alguns outros povos que primitivamente habitavam a região sul do Ceará, embora se registre serem relativamente hostis, não puderam impor a sua supremacia diante do homem branco usando os óbvios meios de que esse dispunha para enfrentá-los. 

    Apesar do sistema de colonização aplicado no sul do Ceará seguir o padrão utilizado no restante do País, algumas variantes aqui implementadas foram decisivas para que hoje não disponhamos de muita informação sobre esse povo. É que, diferentemente, do que se praticou noutros lugares, aqui, a missão catequética dos capuchinos não dispensava o mesmo rigor de registro que os jesuítas exerciam com perícia. De qualquer forma, a colonização da cruz e da espada adotada pelos portugueses não contemplava a convivência da cultura dos indígenas com a que trouxeram os conquistadores. De fato, todo o esforço despendido visava tão somente apossar-se da terra e ter à sua disposição mão de obra farta e barata. Daí a insatisfação dos indígenas que viram ser extirpados de si todos os seus valores culturais, suas crenças e a própria terra em que viviam desde tempos imemoriais.

    Não diferente de outros autores do século XIX e XX, que se referem aos indígenas somente na “gênese” das sociedades, o momento em que os colonos invadem a região e subjugam os nativos, esses se tornando aldeados, e assim sumindo das páginas da história oficial, ignorando-os, como se eles existissem somente no passado.

    Do outro lado, as dos conquistadores, destacamos o personagem, o Capitão (e depois Tenente-Coronel da Guarda Nacional) Simplício Pereira da Silva, figura lendária no sertão pernambucano. O capitão Simplício, também conhecido entre os desafetos pela alcunha de “Peinha de Mão” (uma referência à sua baixa estatura), participou de todas as lutas importantes da época em que viveu (primeira metade do século XIX), na Ribeira do Pajeú de Flores e no Cariri cearense. Foi o Senhor absoluto de “famosas legendas guerreiras e árbitro da elegância beliciosa de seu tempo”.

    Não há registro de nenhuma rebelião, de nenhuma luta famosa em sua época, da qual o capitão Simplício Pereira não tenha tomado parte, a começar pelas brigas em sua fazenda Cachoeira, com os índios Mináus, Xocós ou Cariris.

    Além do enfrentamento com os indígenas, em lutas de aldeamento e de ocupação de terras, Simplício Pereira entrou firme na política rude de seu tempo. Comandou um bando de cabras do Pajeú, contra o coronel de milícias Joaquim Pinto Madeira, caudilho caririense, protagonista da famosa “Guerra de Pinto Madeira”, conhecido como o homem da Coluna e do Altar, que sonhou, um dia, restaurar D. Pedro I ao trono. Em sua atividade guerreira, o capitão Simplício teve papel decisivo no desencantamento dos fanáticos sebastianistas da Pedra do Reino, em 1838, movimento messiânico. Dez anos depois, voltou a colocar suas invictas táticas guerreiras nas localidades pernambucanas de Flores e na Serra Negra, no combate a Francisco Barbosa Nogueira Paz e seus seguidores, conflito vinculado aos desdobramentos políticos, para o Pajeú de Flores, da Rebelião Praieira, que estava acontecendo em Recife.

    Pois bem, a Serra da Canabrava, hoje se divide entre os distritos do Poço, em Brejo Santo, e da Palestina, em Mauriti, Ceará. Aquelas terras pertenciam ao Comandante Superior da Guarda Nacional da Província do Ceará, Pedro Martins de Oliveira Rocha, neto do capitão Bartolomeu Martins de Morais, pioneiro na ocupação europeia na Ribeira do Riacho dos Porcos. Assim como o avô, Pedro Martins foi poderoso daquelas plagas, possuidor de muitas terras e avantajados haveres. No sertão do Brasil arcaico, era aferida a riqueza do fazendeiro pelo número de cabeças de gado contadas nos rebanhos nos limites da fazenda. 

    PANORAMA ATUAL DA SERRA DA CANABRAVINHA





    Havia na Canabrava, um verdadeiro refúgio para os povos originários restantes e remanescentes de mais de século de perseguição de inúmeros sertanistas, dentre eles, o Cel. Simplício.

    No ano de 1833, uma horda de indígenas fugidos, perambulando pelas estradas, roubava de assalto aos transeuntes, invadindo lares e incendiando os pastos – a preciosa forragem para os animais de uso comum e diário – provocando o pavor no ânimo daquela gente, que vivia naqueles rincões ermos, totalmente desprevenidos de defesa.

    Praticantes do canibalismo, trucidavam os vaqueiros quando da lide costumeira de sol a sol, não poupando caçadores de uruçús, preás e mocós, pobres e inermes, que lutavam pela preservação da vida. Estes indígenas agrilhoavam os infelizes vaqueiros e caçadores em cipós de absoluta consistência, verdadeiras cordas de resistência, dos pés a cabeça, fazendo-os aprisionados em estado de absoluta imobilidade. Após o aprisionamento selvagem, colocavam-nos em jiraus ou muquéns e ateavam fogo sob o corpo das vítimas, que eram consumidas em chamas vorazes e aterradoras, em macabro festival antropofágico. A seguir, saciados de vingança, transformaram o crânio das vítimas em taças de liberações estonteantes, preparadas previamente. 

    “Crescia vertiginosamente, dia a dia, o número de suplicantes, alastrando-se, sertão afora, as notícias repugnantes do reduto de índios sedentos de sangue e fautores de tanta desumanidade e desonra.” COSTA, F.A. Pereira da. Anais pernambucanos. 1795-1817. Recife: Arquivo Público estadual, v.7, 1987.

    A numerosa família Pereira, sendo atingida por aqueles danos, tendo a aldeia aprisionado vaqueiros, causando-lhes morte imediata, organizou uma bandeira composta de homens escolhidos para rechaçar o núcleo sinistro, causador de tantas mortes.

    O grupo bem municiado dirigiu-se com as precauções necessárias contra tocaias em caminhos inacessíveis, para o local de homizio da aldeia sedenta de sangue. O assédio foi completo.

    O ódio dos parentes das vítimas estava sequioso por vingança; “o despeito chegara ao último lance da tolerância: era necessário, indispensável, agir; impunha-se aquele extermínio”.

    Ao grupo dos Pereiras, num apelo à coesão humana e à sobrevivência, veio se unir uma turba de homens armados, para investir contra o habitat dos indígenas, pactuados com o demônio, como era voz corrente.

    “Travou-se luta formidanda e encarniçada”, afirmou Abelardo Parreira, em Sertanejos e Cangaceiros, 1934.

    Os indígenas foram sitiados por todos os lados, e sem o recurso supremo da fuga, exaustos da resistência que opuseram improficuamente, desiguais em armas, foram derrotados, sendo imediatamente trucidados, não escapando as próprias indígenas.

    Os audaciosos invasores, engalfinhados na luta corporal, embora com armas desiguais, não saíram imunes de perdas e ferimentos. Numa das investidas à arma de calibre contra os caboclos-brabos, o fazendeiro Manoel Gomes Pereira foi alvejado por uma flecha, sendo imediatamente retirado do local numa tipóia, para longe do teatro dos acontecimentos. Restabeleceu-se completamente depois. 

    As crianças e menores, filhos dos indígenas, seriam poupados: havia uma espécie de convenio tácito entre os sertanejos a este respeito. Os caboclinhos ou indígenas novos, vendo o cerco em que se achavam envolvidos e ouvindo o estertor dos mortos, não dispondo de meios de defesa dos seus, começaram a morder os inimigos e a imprecar desesperada e ferozmente, gritando de modo tão insólito que, por sua vez, foram rechaçados e aprisionados depois de resistência demorada e febril.

    Os pequenos indígenas, de nenhum modo se acomodaram à prisão, procurando, mesmo na condição de prisioneiros, molestar com pauladas e pedradas os inimigos. Estes, por mais que envidassem esforços para contê-los, já estavam exaustos, meio reduzidos à inação e desiludidos de amainar a fúria selvagem. Resolveram, então, não os poupar à carnificina.

    O Brejo é Isso!

    Por Bruno Yacub Sampaio Cabral

    Leia também: 



    REFERÊNCIAS:

    FEITOSA, Helvécio Neves; e NEVES, Venício Feitosa; A Raposa do Pajeú; Expressão Gráfica e Editora; Fortaleza; 2018.

    FILHO, J. de Figueiredo; História do Cariri; Volume 1; Coleção Estudos e Pesquisas; Faculdade de Filosofia do Crato; 1966.

    LORENA, Luiz; Serra Talhada 250 anos de História e 150 anos de Emancipação Política; 2ª edição; Desafio Arte e Gráfica; Serra Talhada; 2019.

    MACÊDO, Heitor Feitosa; Sertões do Nordeste I Inhamuns e Cariris Novos; A Província Edições; Crato; 2015.

    BATISTA, Célio Augusto Alves, e GUIMARÃES, Halley; Breve História dos Municípios do Cariri Cearense: Fatos e Dados; Inesp; Fortaleza; 2020. 

    JÚNIOR, Ferreira; A macheza na sociedade sertaneja serra-talhadense: Origem, elementos constituintes e justificadores; Anais Eletrônicos do VI Colóquio De História - Issn 2176-9060.

    SÁ, Giovanni Alves Duarte de; Compreendendo a construção de um ethos de poder familiar: o caso da oligarquia Pereira no interior de Pernambuco; Revista NEP - Núcleo de Estudos Paranaenses, Curitiba, v. 5, n. 2, dez. 2019 Dossiê Oligarquias do Nordeste no Brasil ISSN: 2447-5548.

    ALEXANDRE, Caio Victor Semião; História do Cariri: um olhar sobre os indígenas da região, na obra de J. de Figueiredo Filho; Especialização em História do Brasil; Universidade Regional do Cariri; Crato; 2018.

    LIMA, Francisco Augusto de Araújo; Siará Grande- Uma Província Portuguesa no Nordeste Oriental do Brasil; volume II página 652. - volume I pagina 313-Volume I, pagina 387 - volume IV pagina 1925-volume IV pagina 2111; Editora Premius; Fortaleza; 2001.

    PARREIRA, Abelardo; Sertanejos e Cangaceiros; Editora Paulista; São Paulo; 1934.

    COSTA, F.A. Pereira da. Anais pernambucanos. 1795-1817. Recife: Arquivo Público estadual, v.7, 1987.

    https://amunganga.blogspot.com/2020/03/coronel-simplicio-pereira-da-silva-um.html - acessado em 24.10.2020, às 18h10min.

    https://familiapereira.net.br/a-raposa-do-pajeu/ - acessado em 19.10.2020, às 19h48min.

    http://araujo.eti.br/descend.asp?numPessoa=4341&dir=genxdir/ - acessado em 19.10.2020, às 18h54min.

    http://mauritiemdestaque.blogspot.com/2015/04/pe-da-serra-da-canabrava-no-distrito-de.html - acessado em 24.10.2020, às 16h32min.