Minha avó paterna veio ao mundo numa noite clara de lua cheia, ano difícil de seca e depois de um parto sofrido. Não tinha parentes importantes nem sobrenome que contasse a história de sua linhagem. Assim, foi batizada como Rita Moça de Jesus. Cresceu e se acostumou ao árido sertão da Paraíba, onde aprendeu com seu pai os mistérios de orações milagrosas e o segredo das plantas medicinais. Quando emigrou para o Ceará, na década de 1960, trouxe consigo seu ofício de bênçãos e sabedoria com as ervas milagrosas.
Em Brejo Santo, especialmente no bairro São Francisco, não havia criança que não tivesse se submetido às suas rezas contra mau olhado, mijada de aranha e toda outra “coisa botada” por gente ruim. Gente adulta também procurava vovó para que se desse fim aos males causados pela inveja e maldade alheia.
Vovó vivia em uma humildade franciscana, nunca tivera um luxo sequer na vida. Sua riqueza era um pequeno quintal, sombreado por uma goiabeira de frutos doces, ao redor de onde verdejavam touceiras de capim santo, mastruz, malvas santas e do reino, erva cidreira, babosa, pimenteiras, arruda e um pé de pinhão roxo. Deste, ela retirava alguns galhos com os quais iniciava seu ritual contra as debilidades da alma. A cozinha cheirava a macela, boldo, canela, cravo e tantas outras meizinhas, que nunca lhe faltavam.
Vovó era alva, de olhos bem verdes (ou seriam azuis? Nunca soube ao certo. Eles mudavam como o céu). Com esse fenótipo, era uma incomum sertaneja. Conservava os cabelos ajeitados em coque, fixado com um pente. Um dia me surpreendi com ela a penteá-los, completamente brancos, abaixo da cintura. Nunca vi cabelos tão longos e bonitos. Cuidava para que nenhum fio caísse e rolasse pelo terreiro, onde bem-te-vis gostavam de ciscar. Alimentava a superstição de que se aquelas aves carregassem algum fio e levassem-no a construir ninhos, seus pensamentos ficariam confusos e ela poderia enlouquecer.
Cresci recebendo suas rezas. Eu e toda uma infinidade de gente da região, que também a tomava por avó, madrinha de coração, madrinha de fogueira. Concentrava-me naqueles seus transes: ela, de olhos semicerrados, balbuciava palavras mágicas em orações que falavam de anjos; arcanjos; da Virgem Maria, na beira do Rio Jordão, com um livro de ouro na mão; noutras, exortava São Bento, São Jorge, São Benedito e um exército de almas vaqueiras... Eram orações fortes que, ao final, deixavam vovó cansada e os galhos de pinhão completamente murchos, sinais de que eu estava impregnado de coisas ruins; mas depois, liberto.
Contava uns oito ou nove anos, quando, certo dia, amanheci febril, sem coragem, com gânglios inchados na região direita das virilhas. Minha mãe fechou o diagnóstico: eram ínguas.
- Vá lá em madrinha Ritinha pra ela rezar.
Fui para a casa de vovó, recebi sua bênção e contei meu problema. Vovó, como uma espécie de médica, foi até o fogão à lenha e tratou de pegar uma peixeira que lá descansava.
- Chegue aqui, meu fi, pro terreiro. Vou cortar as danadas dessas ínguas.
Eu arregalei os olhos. Não supus que vovó estivesse de brincadeira, porque não era do seu feitio.
- Oxe, vovó, e a senhora vai arrancar de faca?
Seu rosto desenhou um sorriso discreto, ao que ela me tranquilizou, em seguida:
- Vou cortar de faca, meu neto, mas não vou derramar uma gota de seu sangue. Não se preocupe. Qual o lado das ínguas?
Indiquei que eram do lado direito. Vovó se acocorou no chão, tomou o meu pé direito e descalço, circundando-o com a ponta da faca, a fim de desenhá-lo na terra batida. Pediu-me que retirasse o pé e passou a fazer cortes no desenho, enquanto proferia baixinho uma ladainha secreta. Estava curado. Depois tomávamos café com bolacha de sete-capas e conversávamos. Pedi por várias vezes que vovó me ensinasse algumas daquelas orações. Gostaria de ser detentor também daqueles miraculosos poderes. Ela ria-se:
- Meu fi, não queira aprender não. Você não vai ter sossego. A gente não pode se negar a quem vem pedir uma reza. Mas chega uma hora que a gente cansa.
- Mas eu quero aprender mesmo assim, vovó.
- Um dia eu ensino…
Uma doença pulmonar veio fragilizar ainda mais a sua saúde. Em determinada altura de sua vida, parou de rezar em quem lhe procurasse. Após sofrer meses, entre idas e vindas ao hospital, ela finalmente se encantou, em maio de 1997.
Antes de morrer, vovó pediu que se cumprisse sua última vontade: não a sepultassem em um caixão. Era da terra e queria ser da terra após cumprir sua missão. Seu desejo foi cumprido. Em chão limpo, do pó ao pó, vovó afirmava naquele gesto que da vida nada levamos além de quem fomos.
Às vezes, quando menos espero, encontro vovó Ritinha em sonhos. Neles, ela continua a me tirar quebrantos, a me fortalecer e me curar. Esta semana, senti seu perfume pelo corredor de casa. Há certos dias em que sinto sua presença. Não tenho dúvidas de que continua a me proteger.
Ela partiu sem me ensinar todos os seus encantos, mas me deixou como legado uma única poderosa oração, com a qual me armo todos os dias antes de sair de casa. Sinto uma vigorosa saudade de seu carinho e de sua simplicidade.
Hérlon Fernandes Gomes
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