A Munganga Promoção Cultural

A MUNGANGA PROMOÇÃO CULTURAL: O Brejo é Isso!

sábado, 29 de janeiro de 2022

LAMPIÃO, CANGAÇO E NORDESTE – AGLAE LIMA DE OLIVEIRA – O FESTEJADO LIVRO E SUA HISTÓRIA COM SR. ANTÔNIO DA PIÇARRA – 2ª PARTE

Wilton me conta que nasceu em 22/06/1965, em Brejo Santo-CE, filho de Maria Ivanilda Teixeira e Silva e Wilton Santana e Silva. A ideia primeira de seu nome era se chamar igualmente ao avô, Antônio Teixeira Leite, acrescido de Neto, por vontade de seu pai, Wilton Santana, grande amigo do sogro. Mas em 12 de Janeiro de 1965, antes do nascimento da criança, o jovem pai sucumbe em um acidente de trânsito. Com o nascimento do menino, seu Antônio recusa a homenagem:

- Vai se chamar como o pai, Wilton Santana Filho. É seu primogênito e único filho.

A referência de pai foi o avô, já que do pai biológico só lhe restaram lembranças contadas. Na altura dos seus 70 anos, Sêo Antônio se viu e se sentiu na doçura da paternidade novamente, um pai com benefícios de avô. Ele se apegou tanto ao menino, que até adoecia quando se apartavam.

Entre Brejo Santo e a Fazenda Piçarra, de Porteiras, a criança cresceu na curiosidade por descobrir as histórias daquele avô e pai, como canta um bom trovador paraibano. Causos antigos, de longos tempos do cangaço, seduziam o menino. Histórias de amizade, de traições, de tiroteio, bang-bangs mais interessantes que os faroestes de John Wayne, assistidos no Cine Alvorada. Seu avô era seu herói, sertanejo samurai, com seu gibão de couro, era um cavaleiro armado, vaqueiro de coragem, intrépido na caatinga, nas pegas de bois. A velhice não atingira sua alma. O avô era famoso, dava entrevistas a escritores que vinham de longe comprovar e anotar suas memórias: Nertan Macêdo, professor Antônio Amaury, Hilário Lucetti, José Peixoto Jr., Napoleão Tavares Neves...

Wilton se levanta, em determinado momento da conversa, e entra em casa; volta com duas fotografias em preto e branco.

- Estas fotos são de quando a escritora Aglae esteve por aqui. Era uma pessoa extremamente simpática, carismática demais, inteligente ao extremo. Era uma pessoa extremamente interessante. Eu era pequeno, mas eu a admirava.

Foto tirada em final de expediente. Setembro/1970.Velho engenho da Fazenda Piçarra.
Identifica-se, de óculos escuros, Ivanilda (mãe de Wilton), Aglae,
Sr. Antônio e o menino Wilton, em primeiro plano.


Na Fazenda Piçarra, corriam os tempos da moagem, um quente setembro. Aglae quis conhecer o cotidiano, os hábitos do lugar, transportando o passado para o presente, ressuscitando nomes, confirmando fatos da época lampiônica. Ela e o avô pareciam velhos conhecidos, porque dominavam tanto das mesmas histórias! Sêo Antônio se admirava do quanto aquela professora sabia de tudo, parecia até ter vivido naqueles tempos. E como era simpática! Aglae sentia ter descoberto  grande relíquia.

Aquele senhor estava ligado a três emblemáticas figuras desses anos findos da década de 20, tinha muitas amizades, transitava de Padre Cícero a Lampião. Era muito amigo do coronel Chico Chicote, que não se dava com o Rei do Cangaço. Metido com essas personalidades, além de tantas outras interessantes, Sr. Antônio viveu histórias incríveis de se contar, confirmadas na rica bibliografia deixada sobre o cangaço.

Olharam a bagaceira, sentiram o cheiro de mel de cana fervendo. Ao fim de quase uma semana, Aglae havia feito muitas anotações. Seu livro estava quase pronto. Aquela visita à Piçarra foi tão engrandecedora, que a escritora levou Sr. Antônio para o Recife, a participar de entrevistas e de eventos. Em um deles, Sr. Antônio chegou a reencontrar os ex-cangaceiros Candeeiro e Barreira, além de conhecer a filha de Lampião, Expedita Ferreira.

Lampião, Cangaço e Nordeste foi um sucesso de vendas e de crítica. A 1ª edição, lançada em 1970, com 5 mil exemplares, esgotou em duas semanas. Mais duas edições saíram posteriormente, dentro de um ano. É um livro que influenciou muitos pesquisadores e escritores, a exemplo de Ângelo Osmiro e Manoel Severo. Eles me confidenciaram que foi o responsável por apaixoná-los pelo fenômeno social do cangaço.

Foi um sucesso editorial, levando Aglae a percorrer todo o Brasil, em conferências por universidades, onde foi homenageada com diversos certificados de honra ao mérito, por magníficos reitores.

Aglae Lima de Oliveira faleceu de câncer na cidade de Recife, em 04 de junho de 1984, aos cinquenta e nove anos. Sua obra continua inspiradora. Lampião, Cangaço e Nordeste não foi mais reeditada. É livro raro, caro, verdadeiro ouro nos sebos. Merece uma reedição.

A última escritora a visitar Sr. Antônio foi a respeitada professora Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, autora de A Derradeira Gesta. Ele viveu longos 99 anos de idade, falecendo em 31/08/1994. 

Estamos sentados no velho banco, dos tempos dos cangaceiros, eu, Bruno Yacub e Wilton. Velho banco testemunha de todas essas histórias, onde se sentaram Lampião e tantos apaixonados pesquisadores.

Wilton (22 anos) e o avô Antônio (92 anos).


Aglae e Sr. Antônio da Piçarra se foram, mas obra e memória permanecem vivas, aprimoradas por outras pesquisas. Wilton é a perpetuação das memórias deixadas pelo avô; é um exímio conhecedor do assunto, mente enriquecida pelas obras que leu ao longo de décadas. Wilton é um tesouro vivo e a Piçarra representa, até hoje, espécie de oráculo das obscuras histórias do cangaço.

Hérlon Fernandes Gomes

Agradecimentos especiais a Bruno Yacub, que me acompanha e me inspira nessas incursões. Para Wilton Santana e sua mãe, D. Ivanilda, pelo carinho e amizade de família. Aos meus avós maternos, José Milagres da Silva e Hosana Fernandes de Moura, compadres em batismo de Sr. Antônio. Vovó, aos 103 anos, em seus delírios ao passado, ainda recorda o velho compadre, como se vivo fosse. Para meu pai, Sebastião Gomes da Silva, barbeiro de Sr. Antônio até o último momento de vida.

Bruno Yacub, Wilton Santana e eu. Piçarra. Dezembro de 2021.

Leia também: LAMPIÃO, CANGAÇO E NORDESTE – AGLAE LIMA DE OLIVEIRA – O FESTEJADO LIVRO E SUA HISTÓRIA COM SR. ANTÔNIO DA PIÇARRA – 1ª PARTE

sábado, 22 de janeiro de 2022

LAMPIÃO, CANGAÇO E NORDESTE – AGLAE LIMA DE OLIVEIRA – O FESTEJADO LIVRO E SUA HISTÓRIA COM SR. ANTÔNIO DA PIÇARRA – 1ª PARTE

Em 1970, uma mulher se tornou a sensação do momento, entrando pela TV nos lares brasileiros, no famoso programa Show Sem Limite, de J. Silvestre, respeitado apresentador da TV Tupi. O programa era desses da pergunta milionária. A professora Aglae, de Cabrobó-PE, foi sabatinada na atração, respondendo a tudo sobre um difícil e interessante assunto: LAMPIÃO. Os programas se avolumavam, a audiência era grande e a professorinha aproximava-se da resposta premiada.

- Absolutamente certa a resposta, dona Aglae! – bradava o apresentador.

Com J. Silvestre - Fotografia: Revista O Cruzeiro - 11/08/1970.

Ela foi uma apaixonada pela história do cangaço, rendendo a publicação de impressionante livro a respeito, intitulado Lampião, Cangaço e Nordeste. Dedicou uma vida a pesquisar, visitando lugares, consultando sobreviventes do período. Nertan Macedo, que honrou as orelhas do livro; e Rachel de Queiroz, que o prefaciou, assim escreveram sobre autora e obra:

“Sem contar jamais com verbas e recursos oficiais, Aglae não fez pesquisa livresca, buscando nas fontes consagradas o que entre nós foi dito e escrito sobre os cangaceiros. Ela própria, nascida e vivida no sertão, conviveu, durante duas décadas, não apenas com a paisagem que emoldurou o Capitão do Cangaço, mas com os cabras sobreviventes da terrível aventura, que lhe ditaram memórias e reminiscências inesquecíveis sobre a vida comunitária do grupo bandoleiro, fatos, hábitos, higiene, sexo, maneiras de encarar as coisas, os homens e os animais. [o livro] é uma fonte de consulta obrigatória a quantos queiram conhecer o cangaço nômade na intimidade.” (Nertan Macêdo)

“Hoje ninguém poderá pretender discutir cangaço e cangaceiros - especialmente quando se tratar daquele que foi chamado o Rei do Cangaço, Lampião -, sem se curvar ante a professora Aglae Lima de Oliveira, autoridade máxima no assunto. (...) Aglae domina o assunto, conhece-o profundamente, vive a história de Virgulino, interpreta-a, recorda-a quase como uma testemunha - , o que de certa forma o foi. Pois se a moça não viu, porque nem era nascida então, ou era pequena demais para entender o que assistia, soube depois recolher no testemunho direto dos contemporâneos, na visita aos cenários do drama (que ocupou lugar tão dilatado no tempo e no espaço do Nordeste), no interrogatório paciente e minucioso dos sobreviventes da grande tragédia sertaneja, a sua verdade mais autêntica.” (Rachel de Queiroz)

Sr. Antônio Teixeira Leite, o famoso Antônio da Piçarra e a escritora Aglae, na Fazenda Piçarra - 1970

Sobre Lampião, resumiu Aglae à revista O Cruzeiro, de 11/08/1970: "Na minha concepção, foi um fenômeno sociológico e psicológico. Um gênio militar perdido nas caatingas. Grande capacidade de liderança. Amava e odiava, alimentava e assaltava, era herói e covarde. Foi profundamente nacionalista. Sua vida foi a luta de um homem contra o destino. Lampião era astuto e calculista e não se pode dizer que era totalmente ruim. É que seu lado mau tem sido muito explorado. Ele não cansava de repetir as quatro coisas que mais gostava: gado gordo, cavalo de passada boa, mulher e arma de fogo."

A distante Piçarra, no Cariri, localizada no município de Porteiras-CE, foi um dos pontos para onde convergiu a escritora, em busca de conversar com Sr. Antônio, 75 anos de idade,  memória viva de sua complicada relação com Lampião: de coiteiro a delator, premido pelas questões legalistas. De fato, a Piçarra foi palco de importantíssimas diligências cangaceiras. Foi lá, por exemplo, onde aconteceu, em 1928, uma das mais penosas baixas no bando do Rei do Cangaço, a morte de Sabino Gomes, o lugar-tenente de Lampião.

Vilson é a criança em primeiro plano, com o avô, primo e tio.

Fui me encontrar com Wilton Santana (Vilson), filho-neto de Sr. Antônio, que me contou a bonita história de afeto entre ele e o seu velho invisível - o seu velho indivisível avôhai; e como foram as visitas de Aglae em busca de todos os detalhes sobre o cangaço. À época, Vilson era uma tenra e curiosa criança, que cresceu apaixonado pelas histórias do perigoso sertão. Ele me contou os detalhes desses encontros.

... Continua

Hérlon Fernandes Gomes

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terça-feira, 18 de janeiro de 2022

O MUNGUNZÁ DO CARIRI


Da culinária da minha terra, o mungunzá salgado, mais conhecido ali pela região do sul do Ceará, para dentro da Paraíba e em algumas cidades circunvizinhas do Pernambuco, é a receita mais carregada da memória afetiva da minha família. Conhece-se muito o mungunzá doce do baiano, ou canjica baiana, do qual também sou fã. Viajando pelo Brasil, acabei constatando que fora daquela minha região, pouca gente parece conhecer o mungunzá como feito no Cariri. A palavra é de origem africana, do quimbundo mu'kunza, e significa milho cozido.

Naquele grande raio de sertão, milho e feijão foram, desde os primórdios, plantações básicas desses sertanejos e garantiam-lhes a nutrição mais costumeira. As carnes salgadas eram a forma de proteína mais adequada para armazenamento e conservação duradoura. Na despensa, o caririense guardava uma costelinha de porco salgada, mocotós, uns pedaços de toucinho...

O mungunzá salgado é uma mistura de todos esses ingredientes em um grande cozido. Há receitas mais modestas, nascidas na escassez das secas, quando o bucho e as tripas não se desperdiçavam e substituíam os cortes mais nobres. Eu, particularmente, aprecio o “mungunzá do inverno” e o “mungunzá da seca”. Os caririenses, viciados no abundante pequi da Chapada do Araripe, acrescentam, a uma ou a outra receita, uns caroços do generoso fruto. É uma receita calórica, necessário composto a quem pegava no pesado, trabalhando duro na lavoura.

O preparo de um mungunzá é um ritual. Não é uma receita simples. O sertanejo nem sempre dispôs das práticas panelas de pressão. Minha avó paraibana contava que era preciso deixar o milho e o feijão de molho, por horas. Em panelas de barro separadas cozinhavam-se os grãos. O fogão à lenha varava a madrugada fervendo, fritando, misturando os sabores. Ao feijão, acrescentavam-se as carnes temperadas com pimenta do reino e cominho. Um cheiro de fartura inundava a casa inteira. Por fim, o milho e o cozido do feijão juntam-se numa panela maior, onde se aferventa a receita completa, finalizada com coentro fresco picado. Incontáveis pratos fumegantes na hora do almoço! Cheiro e gosto da minha gênese, chaves de pertencimento.

Reflito que o mungunzá é para o caririense o mesmo que representa a feijoada para o baiano. Pelo Cariri, é coisa fácil de se comer. Nos cafés antigos, nos velhos mercados, é possível tirar a ressaca de manhãzinha comendo um apetitoso mungunzá. No São João, é sucesso nas barracas de comidas. É receita de ouro da nossa gente, sinônimo de fartura, banquete para a fome, cozinha de tradição.

O Brejo é Isso!

Hérlon Fernandes Gomes

Foto: Google Imagens