A Munganga Promoção Cultural

A MUNGANGA PROMOÇÃO CULTURAL: O Brejo é Isso!

sábado, 22 de junho de 2019

O Cangaço em Brejo dos Santos no Regime Monárquico - Parte II

Com o passar do tempo, contínuas desavenças puseram fim à aliança de João Calangro e com os Quirinos. Um cronista da época, citado pelo escritor Abelardo Fernando Montenegro e que se escondia sob o pseudônimo de Azéglio, assim se referiu aos dois grupos hostis: "Os dois bandos transitavam pelas fraldas da Serra do Araripe. Emboscavam-se reciprocamente. Cada um dos beligerantes se esforçava por aumentar as suas hostes, o que não era difícil, pois até os soldados de linha dos destacamentos de Jardim, Missão Velha e Milagres desertavam e se reuniam aos bandidos".

João Calangro, de estatura baixa, vermelho, sardento e de cabelos cor de fogo, intitulava-se General Brigadeiro João de Sousa Calangro. Jactava-se de haver praticado 32 assassinatos e de não ser por nenhum deles processado.

Remontam àquela época os sucessivos tiroteios travados entre os dois bandos rivais nas feiras de Brejo e Porteiras, onde os cangaceiros se fartavam de cachaça e arruaçavam livremente.

Conta-se que, certa vez, ouvia João Calangro um grande tiroteio em Brejo dos Santos. Dirigia-se para lá imediatamente. O seu grupo lutava com o de Quirino. No lugar Regato, a 2 quilômetros da rua, escutando gemidos que partiam de uma moita à margem do caminho, verificava que se achavam baleados dois bandidos inimigos. Acabava de matá-los.

Em outra ocasião, depois de um combate contra os Quirinos, em Porteiras, repreendia João Calangro a um dos seus cabras, por ter aplicado um pontapé no cadáver de um adversário. " Não faça isto, ele era um cangaceiro honrado".

Um tiro acidental porém havia de determinar o fim daquele estado de coisas. Num dos primeiros dias de feira do ano de 1878, Calangros e Quirinos se defrontaram no antigo "Comércio" de Brejo Santo, na Rua Velha. No decorrer do tiroteio, o velho águas-belense Inácio Gonçalves Bezerra, mais conhecido como Inacinho, foi morto por um tiro do grupo de João Calangro, que, na realidade, não lhe foi dirigido. Pai extremoso, Inacinho procurava os filhos na área perigosa. Estes, em número de cinco, imediatamente após o crime, partiram em perseguição aos Calangros, abatendo um dos bandidos no lugar Canafístula, a três quilômetros do povoado. No dia seguinte, retomaram a trilha dos bandoleiros com o auxílio de um índio domesticado, exímio rastejador.


Aspecto atual do antigo "Comércio" ou "Rua Velha".
O primeiro logradouro de Brejo Santo hoje chama-se Rua Cel. Ferraz.

Aspecto atual da antiga "Rua Velha", sentido norte-sul.

Aspecto atual da antiga "Rua da Velha", sentido sul-norte.

Aspecto atual do antigo "Comércio" ou "Rua Velha".
O primeiro logradouro de Brejo Santo hoje chama-se Rua Cel. Ferraz.

Calangro, como de costume, dispersara o grupo para embaraçar seus perseguidores. Contudo, não evitou que mais dois sicários do seu séquito fossem derrubados de uma árvore, na serra de Canabrava, quando devassavam uma colmeia.

Logo depois do episódio de Canabrava, o coronel João Gomes da Silva foi ao lugar Piçarra, informado que fora da presença de Calangro naquele sítio. Não o encontrou porém. No dia seguinte, recebeu um recado do famoso bandido, aconselhando-o a ficar em casa e deixar a perseguição a cargo dos seus cabras. De sua tocaia, Calangro deixou João Gomes passar em paz, reservando a carga do seu trabuco para os indivíduos de sua laia.

Após esses acontecimentos, que tiveram grande repercussão na própria Capital, o Presidente da Província, Dr. José Júlio Albuquerque de Barros (primeiro e único Barão de Sobral. Foi Presidente das Províncias do Ceará - 08.03.1878 a 02.07.1880 -  e do Rio Grande do Sul - 16.07.1883 a 19.09.1885), resolveu agir decisivamente contra aqueles grupos de malfeitores. 

No dia 02 de outubro de 1878, a povoação de Brejo dos Santos transformara-se em verdadeira praça de armas. Nos diversos pontos das comarcas de Jardim e Barbalha, postavam-se piquetes. Cerca de 500 homens moviam-se às ordens do coronel Canuto José de Aguiar, comandante do corpo policial, que, durante a administração de Alencar, desempenhara, a contento, idêntica comissão.

Canuto dispunha as forças da seguinte maneira: um pelotão de homens escolhidos, a fim de evitar as mortíferas guerrilhas de Calangro e sequazes, seguia no enlaço do grupo principal, enquanto escoltas a cavalo tomavam-lhe a dianteira. Além disso, distribuíam-se piquetes pelas aguadas. As forças, enfim, movimentavam-se continuamente.

Reza a tradição que na cauda do grupo de Calangro marchava um cabra munido de ramagem, com o fim de apagar a pista dos companheiros. Os bandidos iludiam as sentinelas  das aguadas com o bater dos chocalhos nas horas mortas da noite.

A esse tempo, Gato Brabo, comandante de grupo auxiliar do grupo de João Calangro, via-se cercado na Serra do Braga. Conseguia escapar. Prendia-no, porém, no termo de Sousa, da Paraíba. Ia ele no meio de uma carga, em vestido de mulher e embrulhado numa coberta. Dirigia-se para o termo de Teixeira, palco de seus primeiros crimes, e onde tinha o nome de Avelino, quando, na verdade, se chamava Antônio e nascera no termo de Milagres.

A enérgica repressão ao banditismo restabelecia paulatinamente a ordem pública. Grande número de bandidos caia nas malhas da polícia, enquanto uns tombavam na luta e outros fugiam.

João Calangro, perseguido, abandonava Brejo dos Santos. Subia a Serra do Araripe. Antes, porém, a fim de desorientar os perseguidores, amarrava as alpercatas aos pés com as pontas voltadas para os calcanhares. Descia a Serra pelo lado de Barbalha e asilava-se no sítio Silvério, na residência do padre Manuel Antônio Martins de Jesus, proprietário do mesmo e amigo do famoso bandoleiro, além de ser sacerdote desabusado, que vivia em mancebia e tinha vasta prole.

O sacerdote que faleceu aos 76 anos, em Juazeiro do Norte, no dia 27 de janeiro de 1911, ocultou o bandido, arrumou um pilão numa rede, mandou o sacristão tanger o sino da capela e anunciou a morte de João Calangro. Enquanto se efetuava o enterro, o cangaceiro fugia para o Piauí, de onde não se tinha mais notícia dele.

A tranquilidade voltou ao seio da população de Brejo dos Santos. Entretanto, por volta de 1887, novos grupos de cangaceiros começaram a surgir nos antigos domínios de João Calangro.

Nessa época, Viriatos e Brilhantes reviviam as lutas dos grupos de bandoleiros ocorridas durante a grande seca de 1877.

Os Brilhantes eram chefiados por Miguel Raposo de Souza Plácido, valente e perverso bandoleiro da província da Paraíba. Residia no Poço, onde foi morto. Certo dia do ano de 1890, Miguel Plácido recebeu a visita de João Marreca e mais três cabras de Antônio Quelé, os quais, segundo afirmavam, dirigiam-se ao Crato. Miguel matou um suíno de cuja carne os cangaceiros almoçaram fartamente e encheram os bornais. Horas depois das despedidas, Miguel Plácido saiu para dar água a um cavalo. Caiu varado de balas antes de atingir o roçado. Seu cadáver, que foi objeto da curiosidade popular, foi sepultado no cemitério em Brejo dos Santos.

Ao mesmo tempo que resistiam às duras provas de três calamidades (peste, seca e banditismo), os fundadores do antigo distrito de Brejo dos Santos mantiveram o ritmo de trabalho criador que se transmitiria às gerações futuras. 

Depois do quatriênio de fome (1877-1880) durante o qual o próprio Vigário foi auxiliado financeiramente por um bloco de cidadãos generosos, transmudou-se a paisagem da gleba. O povoado, que se desenvolveu em torno da antiga capela, começou a ser acrescido de novos edifícios. E naquelas terras de transição entre a serra e o sertão, novas fazendas de gado surgiram, os rebanhos se multiplicaram e a lavoura firmou-se no primeiro plano de atividades daquela gente laboriosa. 

O Brejo Santo daqueles tempos está fielmente retratado pela pena brilhante do Pe. Belarmino José de Souza, que ali esteve em 1884 secretariando D. Joaquim José Vieira (foi bispo do Ceará de 24 de fevereiro de 1884 a 16 de setembro de 1912), cuja visita pastoral constituiu o maior acontecimento da época.

“Chegamos nesta Freguesia na manhã de 29 de julho. Ali encontramos uma população pobre, mas prendada dos melhores predicados, convicta e animada para as nobres conquistas do trabalho de que vive na confiança de seus perseverantes esforços. Não obstante batida pelo bando de sicários que no triênio da seca devastaram àquele e outros lugares, do que ainda encontramos vestígio, a população do Brejo é bastante valorosa e resignada na história que conta de seus infortúnios. A casa que nos deram, em falta de outra, para hospedagem, foi a que serviu de trincheira de um dos grupos facinorosos, que sustentaram um tiroteio com outro grupo, não menos insolente e cruel, que disputava a posse do lugar! Foi realmente uma época de terror, a do triênio da seca, principalmente no sertão do Cariri, flagelado pelos grupos sanguinários, que nada respeitavam, nem honra, nem propriedade, nem a vida de ninguém.

Ali vimos as portas da referida casa crivadas de balas, e com admiração S. Excia. Rvma. teve que lamentar o fato, e condenar o estado bárbaro de nossos centros nas épocas de sua anormalidade. Pois bem; esta circunstância inspira-me a dizer que o lugar da desordem e do crime, foi convertido em lugar de ordem e de paz; e que a terra profanada pelo pé do malvado cearense foi santificada pela presença do Apóstolo da Igreja! Do mesmo lugar donde partiram balas, partiram bênçãos! Ali estivemos dois dias, prestando S. Excia. Rvma. os serviços de sua consoladora visita. Crismando cerca de 500 pessoas, dirigiu do púlpito algumas palavras, chamando a atenção dos povos para o mau estado da Matriz. Sendo nova a Freguesia, e lutando com adversidades de todo gênero, o respectivo vigário Francisco Lopes Abath fez muito em conservar-se no seu posto e manter as coisas contra a invasão dos bandidos. Durante nossa estada no Brejo foi grande a concorrência dos fiéis. Os confessionários sempre foram frequentados pela maioria do povo durante os trabalhos da visita. Concluindo, dirijo um voto de louvor ao Sr. João Clímaco de Araújo Lima, pelos bons serviços que nos prestou, e bem assim a outros dignos amigos e fervorosos católicos da religiosa Paróquia.”

A casa aludida é situada na Rua Velha, que pertenceu depois a Antônio de Zuza Gabriel, vulgo Medalha. Os grupos referidos pelo cronista eram o de João Calangro e dos Quirinos. Aquela época, exercia as funções de sacristão Antônio Simplício do Nascimento, natural de Goianinha (atual distrito de Jamacaru, em Missão Velha), foi ele o primeiro Sacristão de Brejo Santo.

Além desses episódios, nada mais foi preservado pela tradição escrita e oral sobre o cangaceirismo em Brejo dos Santos durante o Regime Monárquico.



O Brejo é Isso!

Bruno Yacub Sampaio Cabral
Pesquisador



Link da Primeira Parte 

O Cangaço em Brejo dos Santos no Regime Monárquico - Parte I



Fonte bibliográfica:

- Montenegro, Abelardo Fernando, História do Cangaceirismo no Ceará, Expressão Gráfica Editora, 2011;
- Montenegro, Abelardo Fernando, Fanáticos e Cangaceiros, Expressão Gráfica Editora, 2011;
- Silva, Otacílio Anselmo e, Esboço Histórico do Município de Brejo Santo, em revista Itaytera N° 2, Instituto Cultural do Cariri, 1956;
- Macêdo, Joaryvar, Império do Bacamarte, Universidade Federal do Ceará, 1998;
- Neves, Napoleão Tavares, Cangaço, Crônicas e Adjacências, Crônicas Cangaceiras, Brasília, 2009;
- Barroso, Gustavo, Heróis e Bandidos, Os cangaceiros do Nordeste, Fortaleza, 2012;
- Araújo, Padre Antônio Gomes de, Povoamento do Cariri, Faculdade de Filosofia do Crato, 1973;
- Souza, Padre Belarmino José de, Visita Pastoral de D. Joaquim José Vieira ao Sul da Província, Fortaleza, 1884.

sábado, 15 de junho de 2019

O Cangaço em Brejo dos Santos no Regime Monárquico - Parte I

"A arma preferida dos facínoras era o bacamarte, sendo muito usado o boca de sino, de cano de bronze, reforçado e curto."


Sempre foi de notória agitação o clima na região sul cearense. No Cariri, região que de certa forma, lhe corresponde, desde seus primórdios, registraram-se disputas e conflitos, a partir mesmo do período da posse da terra, na época das Sesmarias. Muito mais conturbado, todavia, surgiu o século 19.


A seca de 1877, com seu cortejo de miséria, arruinou a província do Ceará. Milhares de retirantes percorriam as estradas em demanda de vilas e cidades onde imploravam a esmola para matar a fome. No Cariri, a despeito de ser região privilegiada, a fome fazia devastações. Morriam, diariamente, no Crato, de 12 a 16 pessoas. Os famintos não tinham força para mendigar. Às vezes, antes de recolher a esmola, caiam agonizantes, com as feições convulsas, no transe derradeiro.


No meio dessa calamidade, surgiam bandos de cangaceiros que se apoderavam dos bens alheios. Os próprios retirantes invadiam as propriedades em busca de alimento. Furto, roubo, tomada de presos, assassinatos, prostituição e morte por falta de pão, eis as consequências desse flagelo.


Vários grupos de cangaceiros andavam sobre o chão do povoado de Brejo dos Santos. O flagelo começou nos fins de 1874, com o bando de Inocêncio Pereira da Silva, vulgo Inocêncio Vermelho, foragido da vila de Misericórdia (atual Itaporanga), na província da Paraíba, onde assassinara Andrelino Araújo. Perseguidos por Antônio Tomás de Araújo Aquino, irmão da vítima, passavam-se os criminosos para a Comarca confinante de Jardim. Residiam, ora no Salgadinho, do termo de Milagres, ora na povoação de Brejo dos Santos, do termo de Jardim.


Gozando da proteção do Juiz Municipal de Jardim, Dr. Antônio Augusto de Araújo Lima, Inocêncio chegou a exercer funções policiais contra criminosos desvalidos, em toda zona banhada pelo riacho dos Porcos. Logo depois, fugido da cadeia de Crato, juntou-se ao grupo de Inocêncio Vermelho, o criminoso João Calangro, natural de Milagres, onde era conhecido por João Senhorinha. Seu verdadeiro nome, porém, era João de Sousa Calangro. Ele era de estatura baixa, sardento e de cabelos cor de fogo, e não deve ser confundido com o negro João Calangro, perverso cangaceiro de Antônio Quelé, abatido no dia 27 de novembro de 1910 por companheiros seus, nas proximidades de Jati, entre a ladeira do Pacífico e a fazenda Oitis.


Com isso, os salteadores, transformados em agentes policiais, mantinham a ordem nos povoados e prendiam os criminosos desvalidos. O banditismo político chegava ao ponto de uma autoridade regeneradora encarecer ante o Governo Provincial, os serviços que Inocêncio Vermelho tinha prestado, e pedir, ao mesmo tempo, para o bandido, remuneração por iguais serviços, ou promover a sua livrança. A Comarca de Jardim tornava-se um viveiro de criminosos, no qual José Ataíde Siqueira (Zuza Ataíde), Inocêncio Vermelho, João Calangro, Barbosas, Brilhantes, Viriatos, Agostinho Pereira, Pedro Simplício, Carneiro, Manuel Tomás e outros representam o papel de peixe-rei, cuja força estava na razão das façanhas.


Em junho de 1876, Inocêncio foi morto na região do Poço, por Sebastião Pelado, que agia a mandado de Antônio Tomás de Araújo Aquino, irmão de Andrelino de Araújo. Morto Inocêncio, João Calangro assumiu a chefia do grupo, ao qual se incorporou Antônio Vermelho, irmão de Inocêncio, a fim de liquidar Sebastião Pelado, que, por sua vez, formava outro grupo. A luta entre esses bandos rivais, cuja zona de operações se estendia ao território paraibano, atingiu seu clímax quando Dinamarico e José Pombo Roxo, do grupo de Pelado, eram mortos por João Calangro e Gato Brabo, e Manuel de Barros, do séquito de Calangro, foi morto por Pelado.


Naqueles velhos tempos, o Brejo era o lugar preferido pelos bandoleiros que infestavam o Cariri, por motivo de suas condições naturais. No meado de 1876, procedente da vila de Várzea Alegre, ali se encostou o facínora Luís de Góis, acompanhado de Zuza Ataíde. Dentro da povoação de Porteiras, os dois grupos se defrontavam e travavam forte tiroteio, morrendo na luta José Roberto, que ali se reunira com Pelado. O morto, famoso sicário, vivia sob a proteção do capitão José Mateus Pereira da Silva, morador na comarca de Vila Bela, da província de Pernambuco. O capitão José Mateus e sua esposa, Dona Joaquina Pereira da Silva (Chiquinha Maroto), exigiam de Sebastião Pelado a orelha de João Calangro, ameaçando-o de morte caso não se desincumbisse logo a tarefa. Para agravar ainda mais a situação dos habitantes da região, forças irregulares do capitão José Mateus chegaram ao Brejo, em perseguição ao grupo de Calangro.

Nascido na Fazenda Cristovão, em São José do Belmonte, 
o capitão José Mateus Pereira da Silva era filho do tenente 
João Pereira da Silva e Antônia Isabel de Sá. 
Matrimoniou-se, em 26 de julho de 1847, 
com dona Joaquina Pereira da Silva, sua prima legítima e 
filha do Comandante Superior, 
Manoel Pereira da Silva e dona Francisca Januária da Silva, 
da Fazenda Belém.
Fonte: Valdir José Nogueira.


Num encontro entre os dois grupos, Sebastião Pelado recebia mortal ferimento, enquanto João Calangro, sabendo do estado do capitão José Mateus em Porteiras, ia até a povoação, no dia 02 de agosto de 1877, e lá diria-lhe toda sorte de impropérios e ameaças por espaço de dez horas. O capitão José Mateus seguia com destino ao Pajeú, região baluarte dos Pereiras, e de lá trazia mais de cem homens, encontrando-se entre eles grande número de delinquentes. O 2° suplente de Juiz Municipal de Jardim, capitão Juvenal Simplício Pereira da Silva, sobrinho legítimo de José Mateus, assumia o exercício e autorizava a Força de Mateus a capturar João Calangro. A Força era divida em três grupos. Seguia um para Brejo dos Santos, outro para Missão Velha, e outro, comandado por Mateus e seus genros Galdino Alves de Araújo Maroto e Manuel Pereira da Silva, para Milagres.


Em 15 de agosto de 1877, o grupo comandado por Mateus assassinava a Manuel Valentim e espancava barbaramente a Trajano de tal, pelo simples fato de agasalharem o grupo de Calangro. A Força pernambucana, a pretexto de perseguir Calangro, praticava uma série de delitos. O tenente Alfredo da Costa Weyne, que se achava em Milagres, deliberava por cobrança a tais atrocidades. Aceitava, porém, a sugestão do Dr. Antônio Augusto de Araújo Lima, que julgava mais acertado enviar Balduíno Leão, amigo de Galdino Maroto, a fim de encontrar uma solução honrosa. Balduíno, amigavelmente, conseguia que dez homens de Mateus se incorporassem à Força de Weyne, o que ocorria no sítio Bela Vista, distante meia légua de Milagres.


De volta de sua excursão, os Mateus chegavam a Milagres no dia 23 de agosto, em número de 40, depois de terem cometido as maiores violências contra sertanejos indefesos. A permissão dada ao capitão Mateus, para, com Força irregular, perseguir os Calangros, criava péssimo precedente e aumentava a insegurança individual na região. Os grupos de Mateus preocupavam sobremaneira as autoridades cearenses. Um dos grupos tinha por comandante a José Rodrigues e o outro a Vila Nova, ambos conhecidos assassinos. No dia 29 de agosto, o tenente Weyne recebia requisição dos Juízes de Direito de Barbalha e Crato, cujas cidades estavam ameaçadas de ser assaltadas por mencionados grupos.


A exemplo dos bandos de Mateus formavam-se outros grupos que se diziam gente do aludido Capitão, mas que visavam ao roubo e ao furto. O sul cearense vivia dias incertos. Além dos Calangros, operavam os Viriatos na Boa Esperança (atual Iara, distrito de Barro - CE) e os Barbosas no Salgadinho. À parte, mas sob os comandos de João Calangro, havia surgido, em Milagres, o grupo dos Quirinos, chefiados por três irmãos, o mais velho dos quais se chamava Quirino. Agiam também, sob a proteção de Calangro, Jesuíno Brilhante (Jesuíno Brilhante de Melo Calado) e Gato Brabo, os dois últimos também no comando de grupos. Por conveniência, esses bandos agiam separadamente. Havia, entre eles, porém, um “tratado de aliança defensiva e ofensiva de sorte que, quando receavam alguma conspiração, reuniam-se imediatamente, tomando João Calangro o comando geral”.


João Calangro acabara por expulsar os Mateus do Ceará. As populações caririenses responsabilizaram o capitão Mateus pela quase extinção de gados. E com isso, passavam a confiar em João Calangro. Essa confiança “subiu ao ponto de desejar-se pelos povoados, sobretudo em dias de feira, a presença de João Calangro para garantia daquilo que cada um trazia ao mercado publico. Ultimamente povoados, senhores de engenhos e fazendeiros disputavam, como ainda disputam, à porfia, a sua presença sempre que sabem que se aproxima algum grupo de malfazejos, ou temem qualquer assalto. Por isso ele foi obrigado a aumentar o número de seus policiais... E desse modo nulificou-se entre nós completamente a autoridade publica que foi substituída por João Calangro, que entende que a ele e tão somente a ele, o Cariri deve não ter sofrido maiores desgraças” (em “Cearense”, edição de 11 de outubro de 1877).


Correspondências de Barbalha publicadas em Cearense diziam que a cidade estava "sendo garantida pelo grupo do célebre João Calangro, protegido pelas autoridades". Compunha-se o grupo de 22 homens "que trajava a casimira, notando que quase todos os outros são subordinados, pelo fará 100 homens a qualquer hora". Um dos correspondentes concluía: "Hoje é perigoso ser rico, pois o povo pobre (os bandidos) lhes hão declarado guerra de extermínio" (em Cearense, 24.02 e 17.03.1878).


No Cariri, os particulares garantiam o direito de propriedade com armas nas mãos. Em Barbalha, as casas Sampaio, Santiago e outras estavam convertidas em quartéis. Em Constituição, de 17 de fevereiro de 1878, publicava carta de Missão Velha, na qual o correspondente afirmava que os ladrões de gado aumentavam dia a dia, e que a cadeia estava cheia deles. Carta de Barbalha, publicada na mesma edição, comunicava que o gado, a cana e a mandioca não podiam mais produzir, "porque o furto é por demais". E finalizava: "A seca é a causa de tudo". Aliás, por toda a Província flagelada pela seca, o direito de propriedade recebia tremendos impactos. O gado, retirado para o Piauí, ao voltar para o Ceará, na Serra Grande, não conseguia atravessar a linha de salteadores. No centro da Província, outros bandos de salteadores "acometem a propriedade com a maior ostentação, dir-se-á que se proclamou entre nós o comunismo". Na vila de União, o célebre José Rodrigues, à frente de um bando, assaltava os carros nas estradas, tomava os víveres e os distribuía "como se fosse coisa sua" (em Cearense, de 22 e 27.02 e 01.03.1878). Continua na Segunda Parte.

O Brejo é Isso!
Bruno Yacub Sampaio Cabral

Vista da região do Poço, em Brejo Santo - CE.
Cenário de atuação de João Calangro e seu séquito.

Região do Poço, em Brejo Santo - CE.
Local de divisas entre os estados do Ceará, Pernambuco e Paraíba.

Caldeirão natural em rocha, utilizado por João Calangro,
segundo a tradição oral.
Localizado na região do Poço, em Brejo Santo - CE.

Entrada da famosa "Gruta de João Calangro", na região do Poço.

Interior da gruta que serviu de esconderijo para João Calangro e seu bando, durante o século 19.

Fonte bibliográfica:
- Montenegro, Abelardo Fernando, História do Cangaceirismo no Ceará, Expressão Gráfica Editora, 2011; - Montenegro, Abelardo Fernando, Fanáticos e Cangaceiros, Expressão Gráfica Editora, 2011;
- Silva, Otacílio Anselmo e, Esboço Histórico do Município de Brejo Santo, em revista Itaytera N° 2, Instituto Cultural do Cariri, 1956;
- Macêdo, Joaryvar, Império do Bacamarte, Universidade Federal do Ceará, 1998;
- Araújo, Padre Antônio Gomes de, Povoamento do Cariri, Faculdade de Filosofia do Crato, 1973.

O Brejo é Isso!
Bruno Yacub Sampaio Cabral

domingo, 9 de junho de 2019

DONA BALBINA LÍDIA VIANA ARRAIS

Artigo escrito pelo jatiense Otacílio Anselmo e Silva, publicado em revista Itaytera, n° 18, 1974, Instituto Cultural do Cariri, Crato.



Minhas primeiras impressões sobre Dona Balbina remontam ao ano de 1919, pouco antes de sua aposentadoria, em Brejo dos Santos, de cuja localidade foi a primeira professora pública.

Lembro-me bem que, apesar da idade, ela continuava a ter os traços de sua antiga beleza helênica. Era alta, esbelta e fisicamente perfeita. À luz da Biometria, ajustava-se-lhe a classificação dolicocéfala. Fora, por certo, loura na juventude, tal era a cor dos olhos - duas pérolas de um azul já desbotado, emolduradas numa face de alvura marmórea.

Rematava-lhe a harmonia de formas os seus bastos e longos cabelos brancos, que, bipartidos ao meio, davam-lhe o sinete de austeridade, honradez e brandura que caracterizavam sua personalidade. Mas o que mais impressionava de D. Balbina era o caráter sem jaça, a nobreza de mestra, o equilíbrio moral.

Filha do casal João Casemiro Viana Arrais - Mariana Infante Lima, Balbina Lídia Viana Arrais - este o seu nome de batismo - nasceu no município de Lavras (Lavras da Mangabeira), no dia 5 de dezembro de 1862.


Capitão João Casimiro Viana Arrais, pai de Dona Balbina.
Os restos mortais do pai de Dona Balbina se encontram no cemitério São João Batista, em Brejo Santo.

Como ocorria antigamente, ela fez os seus primeiros estudos no próprio lar, com os pais, e, à falta de estabelecimentos públicos, em escolas particulares.

Sua juventude foi passada sob o regime dos lares sertanejos de antanho, entre o lar, a escola e a igreja.

Aos 22 anos de idade, isto é, em 1884, a moça Balbina foi levada a Fortaleza, onde submeteu-se a concurso para o Magistério Público, no antigo Liceu do Ceará, tendo sido aprovada com distinção.

No ano seguinte, ingressou no professorado oficial por nomeação do Presidente Honório Benedito Ottoni.

Eis o seu título de nomeação:

“Juiz de Direito Carlos Honório Benedito Ottoni, Comendador da Ordem da Rosa, Presidente da Província do Ceará, etc.
Nomeio D. Balbina Rolina Viana Arrais para o cargo de professora da cadeira do sexo feminino de São Pedro do Crato.
Palácio do Governo do Ceará, em 16 de janeiro de 1885.

a) Carlos Honório Benedito Ottoni

Cumpra-se e registre-se.
Inspetoria Geral da Instrução Pública do Ceará, em 16 de janeiro de 1885.

Domingues”

A margem desse documento há um selo do Império, de forma elítica, com o dístico da Secretaria do Governo.

Na qualidade especial de uma das primeiras professoras públicas do Cariri, Balbina Viana Arrais inicia a sua carreira com uma disposição de ânimo que lhe acompanharia até o fim de sua longa e fecunda existência.

De São Pedro do Crato (atual Caririaçu) começou a sua peregrinação pelas Vilas e Cidades da região caririense.

Em 21 de novembro de 1887, sob o governo do Dr. Enéas de Araújo Torreão, foi removida para a vila de Várzea Alegre, aonde efetuou-se o seu casamento com Lydio Dias Pedroso, farmacêutico, filho de Crato.


Objeto de origem alemã, para confecção de "pílulas".
Pertencente ao Sr. Lídio Pedroso, esposo de Dona Balbina.
Acervo de Ronaldo Lucena. 
Lídio Dias Pedroso, esposo de Dona Balbina.
Jornal "Constituição" (CE), 10 de junho de 1888.

Esse acontecimento tornou-se um fato decisivo para a vida de D. Balbina. Realmente, logo depois começou a arrastar as consequências de haver- se unido a um cidadão cujas convicções políticas eram opostas à situação dominante.

Adviram, daí, as remoções da jovem professora para as localidades onde o império da força era a lei suprema.

Por ato do Governador Luís Antônio Ferraz, ela foi removida para a cidade de Lavras, a 4 de setembro de 1890.


Jornal "A Pátria" (CE), 07 de agosto de 1890.

Na gestão do Major Benjamim Liberato Barroso, em 17 de março de 1892, removeram-na para a cidade de Barbalha. Dessa cidade, a 9 de setembro de 1893, sob o governo do Ten. Cel. José Freire Bizerril Fontenelle, D. Balbina foi removida para o ensino misto da cidade de Iguatu. Decorrido menos de um ano, por ato de 27 de junho de 1894, do mesmo presidente, ela sofreu outra remoção para a vila de Várzea Alegre.


Jornal "A República" (CE), 20 de junho de 1892.
Jornal "A República" (CE), 23 de fevereiro de 1894.
Jornal "A República" (CE), 30 de junho de 1894.

Finalmente, pelo Presidente Antônio Pinto Nogueira Acióli, teve a sua última remoção, com data de 25 de junho de 1898, para a vila de Brejo dos Santos.

Almanaque Laemmert, edição de 1899.

A antiga vila de Brejo dos Santos marcou o fim da vida nômade de D. Balbina, por motivo do falecimento do esposo, fato ocorrido em 20 de agosto de 1898.

A primeira escola pública de Brejo dos Santos foi instalada à Rua da Taboqueira, numa ampla casa de propriedade do Cel. Basílio Gomes da Silva, chefe do executivo municipal (1893 1909). Do velho solar da Taboqueira a escola transferiu-se para o centro da Vila.


Placa da Escola de Dona Balbina, em Brejo Santo. Acervo de Ronaldo Lucena.

Cinco anos após o falecimento do seu esposo, que lhe deixou apenas uma filha, D. Balbina passou a ter o consolo da companhia de um irmão, o Pe. João Casimiro Viana Arrais, o qual, nascido a 7 de setembro de 1876 e ordenado em Salvador (setembro de 1901), havia sido coadjutor em Itapipoca e vigário de Trairi.

A chegada do Padre Viana naquela vila, ocorrida em 1903, como segundo vigário, produziu um novo impulso de progresso à terra.


Padre João Casimiro Viana Arrais,
foi vigário da Freguesia de Brejo dos Santos de 1903 até seu falecimento, em 1911.

Do próprio púlpito iniciou uma campanha esclarecedora sobre o cultivo do algodão. Incentivando o plantio e fazendo até distribuição de sementes da malvácea, os seus ensinamentos e o seu poder de persuasão deram os resultados esperados, inclusive a instalação de uma fábrica de beneficiamento cujo aquisitor foi o fazendeiro Manuel Inácio Bezerra. Além disso, auxiliado por Antônio Bernardes de Maria, o Pe. Viana construiu a capela de Bom Jesus da Esperança e reedificou a de Senhora Santana, no Poço.


Capela de Bom Jesus, na vila Esperança. Templo construído por Pe. Viana.

No dia 20 de abril de 1911, falecia o Padre Viana, tendo legado aos seus paroquianos, além da moral cristã, o surto de progresso agroindustrial de que atualmente se beneficia aquele município. (O Pe. Viana faleceu quando escrevia um artigo para o jornal “Cetamas”, de Barbalha, do qual era exímio e constante colaborador).


O restos mortais do Pe. Viana estão sepultados na Matriz do Sagrado Coração, em Brejo Santo.

Desaparecido o irmão, D. Balbina permaneceu na sua rotina diuturna, desenvolvendo o meio.

O dia 16 de setembro de 1919, assinala a sua aposentadoria, sob o governo do Dr. João Tomé de Sabóia e Silva. Sua missão, porém, continuou através da filha, Balbina Pedrosa Viana Arrais (Dona Pedrosinha), diplomada em Fortaleza.

D. Balbina Lídia Viana Arrais faleceu no dia 28 de fevereiro de 1951, aos 89 anos. Era ela uma das criaturas raras para quem o Sol deveria parar. Espírito cristão por excelência, caráter sem jaça e equilíbrio moral a toda prova, D. Balbina jamais se aposentou das funções de mestra. Até os últimos dias de sua vida estava sempre rodeada de crianças aprendendo a ler.


Jazigo da família Viana Arrais no cemitério São João Batista, em Brejo Santo. 

Foi presidente do Apostolado da Oração, desde sua fundação até falecer, instituição esta criada pelo Padre Viana, e da Confraria de Na. Sa. Do Carmo, fundada pelo Padre Monteiro. Já nos últimos anos de sua existência, mandou erigir um grande cruzeiro de madeira no alto do cerro que ladeia a cidade.

Mestra utilíssima do ensino público no Cariri, primeira professora de Brejo dos Santos, onde alfabetizou duas gerações, D. Balbina já devia ter o seu nome eternizado na aludida cidade, como prova de justiça e sentimento de gratidão do seu povo.

Notas:

Nos jornais publicados na época, encontramos o nome de D. Balbina mencionado de formas tipográficas divergentes:

- Balbina Lídia (ou Lydia) Viana (ou Vianna) Arrais (ou Arraes);
- Balbina Pessoa Viana Arrais;
- Balbina Rolina Viana Arrais.


Capa do livro "Balbina Lídia Viana Arrais - A Mestra".
Publicação organizada pela Associação da Cultura - Casarão, Nascença e outros
(AMIC - CANAO), em 2007.
Antiga sede da Escola de Ensino Fundamental e Médio Balbina Viana Arrais.
 O "Balbina" ou o "Estadual" foi transformado em uma instituição de ensino profissionalizante pelo Governo do Estado
e transferido de endereço. O antigo prédio foi transformado em Campus pela Universidade Federal do Cariri.
Campus da Universidade Federal do Cariri, em Brejo Santo.
Atual sede da Escola Estadual de Educação Profissional
Balbina Viana Arrais.

Links de artigos sobre Dona Balbina:

Balbina Lídia Viana Arrais

A primeira Professora pública de Brejo Santo

Lançamento do Livro "Balbina Lídia Viana Arrais - A Mestra"

O Casarão da Família Viana Arrais

O Casarão dos Vianna Arrais, um lar de saberes e ensinamentos

Fontes bibliográficas:

- Silva, Otacílio Anselmo e, em revista Itaytera, n° 18, 1974, Instituto Cultural do Cariri, Crato;
- AMIC - CANAO, Balbina Lídia Viana Arrais - A Mestra, 2007, Brejo Santo.





O Brejo é Isso!

Bruno Yacub Sampaio Cabral
Pesquisador


domingo, 2 de junho de 2019

HOMENAGEM À MEMÓRIA DO CORONEL BASÍLIO

    Transcrevemos na íntegra, o livreto intitulado de "Homenagem à memória do coronel Basílio Gomes da Silva, o honrado chefe de Brejo Santo", escrito pelo Padre Leopoldo Fernandes Pinheiro, em julho de 1940.
    Essa transcrição está publicada no livro "História Politico-Social Brejo-Santense", escrito por Francisco Mirancleide Basílio Cavalcante e Francisco Leite de Lucena, 2008, Brejo Santo, Ceará.

Homenagem à Memória do Coronel
Basílio Gomes da Silva
O honrado chefe de Brejo Santo

Capa do livreto do Pe. Leopoldo Fernandes,
 publicado pela Tipografia Manhã, Crato, 1940.

    As primeiras horas da manhã do dia 08 de abril do corrente ano, faleceu, em Brejo Santo, o venerado coronel Basílio Gomes da Silva, que era, com justiça, tido naquela cidade, como o patriarca da terra.
    Cidadão que vinha de longe nos círculos políticos e sociais do Cariri, o extinto foi uma das figuras de mais relevo, de mais larga projeção, de atuação mais acentuada, na vida pública desta região, mormente em seus períodos mais agitados, quando mais acesas iam as lutas partidárias, e o predomínio político se decidia, quase sempre por golpes de força, em que triunfava, não a força do direito, mas o direito da força, representando no cangaceirismo que trouxe, em agitação contínua, durante muitas dezenas de anos, esta privilegiada região do Ceará.
    Foi nesse cenário de altos e baixos, de insegurança e de incertezas, quando o prestígio dos chefes locais dependiam mais do número de bandidos de que podiam dispor, que de sua própria força moral ou mesmo eleitoral, que a personalidade do coronel Basílio se destacou, como uma exceção honrosa, nos processos então dominantes na política do Cariri.
    Conheci-o em fim de 1911, quando, por determinação do Sr. Bispo de Fortaleza, assumi as funções de Vigário em Brejo dos Santos, em substituição ao pranteado do saudoso padre João Casimiro Viana. Não foi sem muito custo que aquiesci á ordem superior, assustado com as notícias que me chegavam desta zona, onde, segundo se afirmava, as menores questões se resolviam ao troar do famoso bacamarte, ou ao pestanejar da temida lâmina do punhal.

O Tenente-Coronel da Guarda Nacional
Basílio Gomes da Silva,
recebeu a patente assinada pelo próprio
 Presidente da República, Floriano Peixoto, em 1892.
Basílio Gomes da Silva foi nomeado
 Tenente-Coronel da Guarda Nacional,
 N° 83°do Batalhão de Infantaria, 
da Comarca de Aracati.
Fonte: Jornal Gazeta de Notícias (RJ); Ano XVII;
N° 234; 22.08.1892; pág. 01.

    O meu primeiro encontro com o venerado cidadão me assegurou que pisava em terreno firme em meio a confusão e a desordem que morriam nos limites do Município beneficiado por insigne varão.
    Fácil me foi perceber que se me defrontava um chefe político de real valor, de marcante influência social no meio em que vivia, mas que ignorava, ou melhor, repelia todo e qualquer método partidário que implicasse outro meio de orientar, de dirigir os destinos políticos do Município, que não o da persuasão, principalmente, que foi virtude que, por excelência, assinalou, com traços fortes, o longo período de sua existência.
    Aquele tempo, o coronel Basílio, sem exercer nenhuma função publica, se achava, contudo, no fastígio do poder. Gosava da mais absoluta confiança do então Presidente do Estado, e dispunha, a bel prazer, de todas as posições do Município.
    A região caririense, ainda mal ferida de dolorosas lutas que a ensanguentavam, emprestando-lhe uns acentuados laivos de barbaria, agitava-se, numa perspectiva sombria, para novos conflitos, novos assaltos, em que se punham em risco a vida de muitos e as propriedades de todos.
Brejo dos Santos, porém, isolava-se em meio as tormentas que batiam de todos os lados, como um oásis de paz, de bem-estar e segurança, graças a ação prudente e pacífica de seu ilustre chefe.
    O fato tinha para mim um cunho profundamente extraordinário, e não me cansava de admirar como um homem, intimamente político, cioso de seu prestígio e do renome de sua influência, conseguia escapar aos manejos ignominiosos por que se processavam e se resolviam os problemas políticos do Cariri. E isto com a circunstância altamente expressiva de não perder a amizade e o respeito de seus pares na administração das demais comunas da região caririense.
    A atitude tão respeitável e merecedora dos maiores e legítimos encômios me fazia relembrar sempre o que um dia respondeu Aristipo aos aos que o interpelavam sobre que coisa mais admirava entre os mortais. Um homem virtuoso entre muitos estragados, respondeu o filósofo com facilidade e mais ainda com acerto. Sem avisar com esta judiciosa observação, a personalidade de nenhum chefe caririense, não posso deixar de ressaltar que ela ajustava de modo perfeito ao senhor dos domínios brejo-santenses.

Casarão da Nascença, ponto inicial do povoamento de Brejo Santo,
posteriormente pertencente ao coronel Basílio.

    Ao prestígio do coronel Basílio, deve Brejo Santo a sua elevação a categoria de Vila, logo nos primeiros anos da República, cabendo-lhe as funções de administrador do Município, cargo em que se houve com a mais absoluta honradez e operosidade, num longo período de 18 anos ininterruptos. Durante este largo espaço de tempo, e também durante os anos que se seguiram, em que o digno cidadão foi senhor da situação política da terra, aquele Município jamais conheceu, como fizemos notar, os choques que traziam em desassossego as populações de outros Municípios, pobres vítimas da ferocidade rústica de patronos de bandidos, improvisados em chefes da política.
    E nem era que em Brejo dos Santos faltassem espíritos turbulentos, criaturas para quem os métodos da política reinante, tinham um sabor especial, denunciando as tendências íntimas do seu próprio espírito. Mais de uma vez assisti, naquela cidade, a um desses levantes armados, ameaçando a paz daquela gente, numa explosão de ódios e de vingança. Quando tudo parecia converter-se em sangrenta deflagração, Basílio, impondo, apenas com a sua autoridade moral, o desarmamento de todos e consequentemente tranquilidade da população que podia voltar, desassustada, as suas habituais ocupações.
    Costumava dizer que o melhor meio de vencer os maus, é ser bom, e não fazer o que eles fazem. E com esta filosofia puramente cristã, onde vêm esbarrar e morrer certos princípios falsos e perniciosos, que medem o homem como um produto do meio, uma resultante fatal de influências exteriores, pôde o ilustre chefe caririense levar a bom termo o governo do seu Município, durante o longo período de quase trinta anos.

Punhal pertencente ao coronel Basílio Gomes.

    Em seus modos, em sua compostura, na ordem de suas ações e principalmente no exemplo edificante de sua vida, estava o segredo de suas vitórias. Razão de sobra tinha, pois, quem afirmasse que as misérias humanas não têm cara para aparecer senão onde se não conhecem ou se não estranham.
    Numa época em que o cangaceirismo formava como que a corte de numerosos chefes políticos, em torno do coronel Basílio jamais se viu um homem sobraçando um rifle, ou pondo a mostra outra arma qualquer que denunciasse estar o pacífico cidadão amparando os ominosos processos condenados pela rigidez de seu caráter e repelidos pela dignidade de seu próprio exemplo pessoal.
    Homem sem letras, tinha viva a inteligência e profundamento lúcido o sentido de observação.     Não foi por falta de suas sensatas advertências, que mais de um chefe político desta região, viu, de momento, desaparecer todo o seu prestígio. Só um exemplo.
    Nas proximidades da deposição do coronel Belém, o mais célebre chefe político do sul do Estado, e também vice-presidente do Ceará, o coronel Basílio veio a esta cidade, hospedando-se na residência do mesmo, que era seu amigo e compadre.
    Depois de sondar o ambiente em que atuava o domínio político daquele cidadão, o coronel Basílio observou-lhe com aquela sinceridade e ela, reza, notas marcantes de seu caráter: "Compadre, acabo de visitar a cidade e falei com várias pessoas de destaque. Permita que lhe diga: você já governou muito tempo. É o momento de arranjar um substituto. Há certas circunstâncias na vida em que o homem fica em melhores condições, trocando o posto de comando pela situação de soldado."


Coronel Basílio Gomes com dois oficiais, no pátio do Casarão da Nascença, 1917.

    O conselho não foi atendido e, dizem, foi repelido com mofa por vir de um homem que não conhecera nunca a resistência armada contra os adversários. Resultado: poucos meses depois subleva-se grande parte da população cratense, e o prestigiado chefe perde todas as posições, com a mais dura contingência de ser forçado a deixar a terra onde governara por longos anos.
    Pode ser que o resultado da rebelião haja sido uma dolorosa surpresa para o coronel Belém, mas não foi para seu amigo e compadre que percebeu, num ligeiro contato com pessoas de influência na cidade, a situação precária daquele a quem em tempo procurava salvar.
    Como chefe de numerosa e distinta família, não foi menos nobre e honrada a vida do prestigiado cidadão.
    Cultivando com esmero e cuidado as tradicionais virtudes cristãs, que ungiam os antigos lares com o perfume do respeito e da confiança mútua, soube o coronel Basílio alimentar junto a sua grande descendência, aquela famosa aura patriarcal, que lhe deu o direito de ser considerado como um dos mais ilustres e dignos chefes de família nesta região do sul do Estado.

                              
     Na foto: Brejo Santo, em 1918. Figuras representativas do Município em cordial reunião na Casa Paroquial. Sentados da esquerda para a direita: Cel. Manoel Inácio Bezerra, Prefeito na época; padre Raimundo Monteiro Dias, que foi Vigário no período de 1913-1915; padre João Alboíno Pequeno, pároco na época, filho de Crato e falecido como Monsenhor, em São Paulo, Capital; padre Plácido Alves de Oliveira, Vigário de Milagres; Cel. Basílio Gomes da Silva, que governou o Município de 1893 a 1909, chefiando o Partido Republicano Cearense (Aciolino), em cuja legenda figurou como candidato a Deputado Estadual nas eleições de 1896; João Gomes de Moura. Em pé na mesma ordem: Manoel Inácio de Lucena (Cel. Manoel Chicote), Prefeito em 1912-1914; Cel. Manoel Leite de Moura, Prefeito no período de 1929-1930, José Leite de Moura, irmão do precedente; Antônio Gomes de Santana (Antônio Generosa); Antônio Teixeira Leite (Antônio da Piçarra); Misael Fernandes Pinheiro, Coletor Estadual; Alcides Cavalcanti, primeiro Agente da Estação Telegráfica, natural de Alagoas; Emanoel Antônio Cabral (Bom de Ouro); José Luís Tavares Campos, Joaquim Gomes da Silva Basílio (Quinzô), Prefeito de 1914-1916; José Nicodemos da Silva, irmão do precedente, Prefeito no período de 1918-1919. Foto de Osael. Fonte: AQUINO, J. Lindemberg de; Valorização do Cariri; Revista Itaytera; Ano III; Nº III; pág. 190; Crato-CE; 1957.



    Todos o ouviam, todos o acatavam, a todos sabia ele distribuir, no momento oportuno, o conselho de pai carinhoso e desvelado, ou a advertência necessária do chefe de que não queria ver desautoradas as normas que devem regular os membros de famílias numerosas.
    Homem de costumes austeros, jamais violados por um desvio que quebrasse a sua irresponsável linha de conduta, pública ou particular, foi igualmente um esposo que soube honrar a sua santa e inesquecível companheira a quem dedicava todo carinho de sua alma, a bondade imensa de coração.
    Quanto teriam de aprender as atuais gerações daquele austero cavalheiro, no respeito sagrado que consagrava no venturoso lar!
    O coronel Basílio nasceu em Águas Belas, estado de Pernambuco, aos 14 de julho de 1846. Ao falecer faltava-lhe pouco mais de três meses para atingir a avançada idade de 84 anos. Pelo lado paterno descendia da tradicional família do capitão-mor Sebastião Rocha Pita, que representou papel saliente nos sertões da antiga Província da Bahia.
    Fim de 1858, seus pais José Francisco da Silva e D. Ana Maria da Conceição, por injunções do situacionismo político, deliberaram emigrar para o Ceará, onde se estabeleceram, no sítio Nascença, ao pé da hoje cidade de Brejo Santo. Em meio os numerosos membros da distinta família, distinguiu-se logo o jovem Basílio Gomes da Silva por sua operosidade e os lances seguros e certeiros que deixavam entrever, bem longe ainda, o cidadão que deveria encher mais de meio século, com a nobreza de um caráter rígido e austero, aliada a bondade de um coração sempre aberto as misérias alheias e compadecido do infortúnio de quantos o procuravam.
    Foi em 1869 que se uniu,pelos lações do matrimônio, com D. Maria da Conceição de Jesus. Senhor de certo recurso, resolveu estabelecer-se com casa de tecidos, empreendendo para isto um longa viagem a Pão de Açúcar, estado de Alagoas, então um dos empórios comerciais mais importantes onde se abasteciam os comerciantes desta região.
    A boa sorte sempre bafejou em seus negócios, o que lhe valeu tornar-se em poucos anos, o negociante mais próspero daquela localidade que apenas começara a desenvolver-se.
    Amando a terra que lhe dera uma companheira desvelada e santa de par com certa abundância que lhe garantia algum conforto, tratou logo de pleitear junto ao governo os primeiros benefícios que poderiam caber a um humilde lugarejo ainda não registrado na geografia do Estado. Foi assim que em 1875, por uma Lei do Presidente da Província, o antigo Brejo da Barbosa, recebia as insignias de Distrito com o nome de Brejo dos Santos, anexada a então comarca de Jardim. Mais ou menos nessa época, o Sr. Dom Luiz criou a Freguesia, erigindo a capela do Sagrado Coração, em Matriz, desmembrando-a da de Milagres e Jardim.
    Foi ainda pelo prestígio do coronel Basílio que, em 1890, o distrito de Brejo dos Santos foi elevado a categoria de Município, e a localidade, já relativamente desenvolvida, recebia, entre alegres festejos populares, o Brasão que a consagrava Vila para todos os efeitos. Foi seu primeiro administrador o coronel Basílio que, como já foi dito, dirigiu pessoalmente os destinos da terra durante 18 anos ininterruptos.
    Em 1919 o céu lhe arrancou a companheira de meio-século, abatendo, com tão profundo golpe, as energias físicas do venerado ancião.


    Apagara-lhe a lâmpada que lhe iluminava as derradeiras curvas da existência. Os dias se lhe tornaram, então, sombrios, afogando-o nas trevas de uma tristeza imensa que prolongou até a morte.
    O carvalho, quando o fere um raio do céu, inclina-se para a terra, mas do cume da haste se destaca o derradeiro galho, procurando sorver na amplidão do espaço, uma gota de orvalho que salve das inclemências do sol,a grande árvore abatida.
    O coronel Basílio, abatido pela velhice e pela viuvez que lhe dilacerava a alma, encontrou na noite de seus derradeiros anos, não o orvalho que se forma nas baixas camadas atmosféricas, mas esta preciosa gota de luz que cai dos olhos de Deus nas almas daqueles que nunca se moveram sem os acenos da Providência Divina.
    Recolheu-se aos aposentos para fazer o último e talvez o primeiro retiro da sua vida. Mas um retiro de 20 anos, em que Deus foi o primeiro de seus confidentes, a mira que nunca se afastou de suas aspirações e de seus anseios.

Casarão do coronel Basílio Gomes da Silva, edificada no ano de 1872,
estando localizada na Avenida que leva seu nome, sendo popularmente
conhecida como Rua da Taboqueira.

    Ao vê-lo assim na terra, vivendo no céu pela contemplação de Deus, dele bem podia ajuizar o que diz o Espírito, que o prêmio de sua vida imaculada era a sua velhice venerável. Foi nessa atitude de santa e doce resignação que a morte veio lhe bater a porta, naquela madrugada fria de 06 de abril último. Não o surpreendeu aquela visita que é pavor de muitos e tristeza de quase todos. Ele, que tinha sempre o Evangelho sob o olhos, lera em São João, que o Senhor que nos veio dar a graça, disse que viera dar a vida: Ego veni, ut vitam habeant (Eu vim, para que tenham vida). Baixou a sepultura entre lágrimas de seus filhos e parentes e do povo profundamente agradecido.

Jazigo da família Leite Basílio, onde se encontra os restos mortais
do coronel Basílio Gomes da Silva.

    Em torno de seu esquife gemiam milhares de corações anuviados pela tristeza daquele dia de luto-derradeira consagração aquele que se consagrava inteiramente a terra que deixava envolta na penumbra triste de uma saudade infinita.

Crato - CE, julho de 1940.

Padre Leopoldo Fernandes Pinheiro


Fonte Bibliográfica:

- Pinheiro, Leopoldo Fernandes, Homenagem à memória do coronel Basílio Gomes da Silva, o honrado chefe político de Brejo Santo, 1940, Tipografia Manhã, Crato, Ceará.



Quem foi padre Leopoldo Fernandes Pinheiro?



    Natural de Solonópole - CE, foi Professor do Colégio Diocesano, no Seminário Episcopal, no Colégio Santa Tereza e na Escola do Comércio, todos em Crato. Sempre integrou a turma dos intelectuais da terra e foi um dos componentes do famoso Congresso de Poesia, realizado em Crato, em resposta aos suntuosos e vazios Congressos de Poesia, nas décadas de 1930-1940, em todo o Ceará. Padre Leopoldo Fernandes Pinheiro veio para Brejo Santo acompanhado de seus irmãos: Mizael Fernandes Pinheiro (Coletor Estadual) e Maria Fernandes Pinheiro Basílio, D. Doninha (Telégrafa e matriarca da família Pinheiro em nossa cidade), tendo sido Vigário Cooperador em Brejo Santo, no período de 1911 a 1913.
    Orador de mão cheia, também escrevia sobre assuntos vários, notadamente históricos e genealógicos.
    Jornalista de raros recursos e grande conhecimento, não era muito sociável, todavia.


Fonte Bibliográfica:

- Cavalcante, Francisco Mirancleide Basílio, Memórias de Brejo Santo, Dados biográficos dos homenageados em logradouros públicos, 2001, Brejo Santo, Ceará.
- Nóbrega, Fernando Maia da, Brejo Santo sua história e sua gente, de Brejo da Barbosa a Brejo Santo, Breve sinopse do município, 1981, Brejo Santo, Ceará.


O Brejo é Isso!

Bruno Yacub Sampaio Cabral
Pesquisador