Em 2003, eu era um
rapaz de vinte e dois anos, com um caderno de poesias na gaveta,
cheio de sonhos e apaixonado pela leitura. Lecionava literatura no
Colégio Padre Viana e gostava muito do que fazia.
Era uma manhã de um
dia qualquer, intervalo das aulas, eu estava na sala de direção
da escola, tomando meu café, quando me surpreendo com a secretária
Cacau Gomes, imprimindo, cortando folhas, grampeando lombadas e
colando livros. Um livro nascendo ali, na minha frente, de forma
especial, artesanalmente. Peguei um dos exemplares já acabado, capa
vermelha e azul, com as estrelas da bandeira de Brejo Santo: Veredas
do Chão Nativo, de Francisco Alves Araújo.
Levei o livro
para casa. Depois do almoço, fui degustá-lo na rede. A leitura me
prendeu fortemente, terminei-o ao longo da noite, impregnado daquelas
memórias sertanejas, ditas de forma tão verdadeira e cativante,
numa prosa cuidadosamente construída, por um senhor de setenta e
seis anos, que realizava o sonho de ver seus escritos reunidos em
livro.
Veredas do Chão
Nativo é um cinemascópio de Brejo Santo das décadas de 30 a 40,
marcadas nas memórias da criança e do rapazinho Chico, lembradas e
contadas com maestria pelo valoroso escritor, durante sua velhice.
Naquelas páginas o
leitor se transporta àquele tempo, parece que anda lado a lado de
quem descreve, enxergando as minúcias, sentindo os gostos e cheiros
da natureza viva da pacata Brejo Santo; traz também o olhar
naturalista sobre a periferia do lugar e a dura realidade da gente
marginalizada desse período; além um lirismo de encantamento naquela
prosa cuidadosa. São análises bem particulares, ditas com as
palavras necessárias, representando um importante vestígio de tempo
da nossa história.
Tudo aquilo me
lembrou de Cora Coralina, que só veio trazer sua poesia as público, já no crepúsculo da vida.
O livro me empolgou
tanto que resolvi escrever uma carta para o autor. Curiosamente, não
o conhecia pessoalmente, de modo que imaginei ser mais prudente
apresentar-me com as impressões sobre aquele filho que ele trazia ao
mundo.
Soube que a carta
deixou o autor muito feliz e envaidecido. Marcamos de nos conhecer na
sua casa. Fui recebido com grande cordialidade e alegria. Conversamos
bastante sobre poesia, literatura, sobre seus gostos literários. Ele
me mostrou sua biblioteca. Amante da obra de José de Alencar e
Humberto de Campos, especialmente, a esses dois mestres é possível
creditar grande influência na escrita de Francisco, um lapidador da
frase, um conhecedor do léxico, um ourives que ornamenta sua joia
com grandiloquência.
Nascido na Vila de
Brejo dos Santos, em 14 de Julho de 1927, filho de Manuel Alves de
Moura e Josina Alves Araújo, Francisco já demonstrava pendor pelos
estudos, desde seus verdes anos. Por oportuno, veja-se esse trecho de
Veredas do Chão Nativo, em que o autor descreve seus primeiros
tempos de escola:
“Pela mão da
minha prima Marquesa Brito, eu fui levado, pela primeira vez, quando
tinha meus seis ou sete anos de idade, para a escola de dona Balbina.
A professora a quem fui destinado, era dona Altina, que passei a
chamar de madrinha. O curso era misto, com alunos de ambos os sexos,
uns aprendendo o ABC, outros lendo a cartilha e outros mais tirando
contas e decorando pontos. Era uma mistura de primeira letras com o
primeiro e o segundo ano do ensino primário. Madrinha Altina
ministrava as suas aulas, empunhando uma régua e falando sem parar.
Quando a aula era de história, os meninos liam ou decoravam o ponto
em voz alta, numa inflexão pausada e cantada, que podia ser ouvida
do lado de fora da escola:
-“Brejo dos
Santos, antigo Brejo da Barbosa...”
-“Ao sopé da
Serra do Araripe...”
Casarão da Família Viana Arrais, onde o escritor realizou seus primeiros estudos |
Na hora do
recreio, todos os alunos se reuniam numa grande sala dos fundos da
casa, a qual se dilatava pelos dois vãos em que se repartia a mansão
e era destinada a reuniões e à prática de exercícios de canto e
de ginástica. Antes de serem liberados para os folguedos
recreativos, os meninos cantavam o hino do recreio, cujos versos
começavam assim:
-“já
é hora do recreio
vamos
colegas brincar.
do
trabalho não fugimos,
mas
é preciso folgar...”
Depois, a
meninada debandava pelo quintal e pelo jardim plantado de rosas e
laranjeiras num terreno murado, que ficava ao lado da escola e
pertencia a dona Balbina.
Nos
feriados e outras datas cívicas os alunos se apresentavam metidos em
sua fardas azuis e brancas, para as concentrações escolares em
frente ao Paço Municipal ou na Avenida. E, também, nos
aniversários natalícios de padre Pedro, a escola saia em formatura
até a casa paroquial, para receber as bênçãos do vigário e
render-lhe as homenagens. Os escolares entoavam, então, o “19 de
maio”, hino composto por dona Pedrosina e musicado por Mestre
Olívio, cuja primeira estrofe estava vazada nestes termos:
-“salve dezenove de maio!
para nossos corações
é data gloriosa,
que nos enche de emoções!...”
O padre Pedro
era bom e amigo das crianças e mandava organizar, com o concurso das
professoras, grandes e animados piqueniques no caminho da taboqueira,
debaixo dos pés-de-muquém.
Nas minhas
lembranças da infância, estão gravadas as mais gratas recordações
daquele amável centro de cultura, onde mãe, filha, irmã e netas,
desincumbiam-se com abnegação e altruísmo, da nobre e edificante
missão de levar luz onde havia trevas...”
Ainda muito jovem,
seguiu viagem ao Rio de Janeiro, na década de 40, onde serviu ao
Exército Brasileiro. De volta ao torrão natal, na década de 50,
laborou na Usina de Algodão – COLINS, de propriedade de seu tio,
José Amaro. Posteriormente, assumiu a chefia do IBGE na cidade de
Porteiras.
Em 19 de Maio de
1957, sob as bênçãos de Padre Pedro Inácio Ribeiro e o jovem
padre Dermival de Anchieta Gondim, contrai núpcias com a professora
Neide Teles, filha do respeitado professor José Teles de Carvalho.
Dessa união, nascem Núbia, Napoleão e Maria de Fátima Teles de
Araújo.
Francisco Alves de Araújo de Neide Teles de Araújo - 19/05/1957 |
No Instituto Padre
Viana, Francisco lecionou a disciplina de História. Por fim,
gerenciou uma escola de datilografia de sua propriedade.
Aposentado,
dedicava-se à faina da leitura e escrita, atividades que lhe
conferiam enorme prazer. Em silêncio, no corredor de casa, não
gostava de ser importunado naquele seu momento sagrado de intimidade
do eu-lírico. Entretido com um livro ou de papel e caneta, estava a
rabiscar seus poemas e suas ideias.
Ao longo dos seus 76
anos, descobriu-se acometido de depressão. Eram a leitura e a
escrita seus momentos de fuga para essa pesada tristeza. Por
recomendação médica, recebeu o impulso para tirar seus escritos da
gaveta. Foi assim que Veredas do Chão Nativo veio à luz, em 2003.
A repercussão do
livro no seu íntimo realmente trouxe um impulso de vida, de modo
que, meses depois, ele se animou a reunir toda a sua poesia escrita
em um único volume, que chamou Miscelânea Poética. Tive o prazer e
a honra de escrever o prefácio desse livro e de realizar a arte
gráfica da capa. A poesia de Francisco é bem ao gosto do
Parnasianismo brasileiro, com linguagem rebuscada e atenta observação
ao tema descrito. É o reflexo de sua cultura, o resultado de suas
leituras, de seu conhecimento sobre a História, a Geografia; é o
álbum de retrato de suas viagens e observações de seu cotidiano
trazidas para o mundo na forma etérea da palavra dita com o coração.
Eu sentia grande
prazer em estar na companhia de Seu Chico – como o chamava. Nossa
diferença de idade não era um obstáculo para nossas conversas.
Possuíamos gostos literários bem parecidos. O brilho de seus olhos
e sua empolgação revelavam um jovem entusiasmado em poder debater e
ouvir sobre o reflexo daqueles dois livros nascidos no espoucar dos
últimos fogos da vida.
A velhice,
infelizmente, avançou roubando sua lucidez, transportando-o a viver
em épocas do seu passado, confundindo seus pensamentos, até lhe
tirar, por fim, o que mais gostava: o entendimento do saber dos
livros. A debilidade senil, a despeito de lhe tirar o brilhantismo da
palavra lida e escrita, não apagou todos os vestígios daquele velho
hábito. Mesmo sem compreensão daquilo que lia, Chico se deixava
permanecer sentado, com um livro na mão, olhando concentradamente
páginas e gravuras. O velho hábito insistia em resgatar daquela
atividade quem fora aquele homem.
O autor nos deixou
no dia 13 de Maio de 2015, aos 87 anos, dia de Nossa Senhora de
Fátima, sua santa de devoção. Sua obra é o registro perpétuo de
uma grande personalidade, de um cuidadoso escritor, zeloso pela
perfeição da frase, da intenção da palavra, do que
necessariamente precisava ser dito.
Deixo, por fim,
minha profunda admiração e respeito pelo escritor e trago este
capítulo sobre o Juá, um dos capítulos que mais me fascinou, em
Veredas do Chão Nativo. Seria de grande importância para a
comunidade que os livros de Francisco Alves de Araújo fossem
reeditados.
Hérlon Fernandes
Gomes
O JUÁ
Do começo ao fim,
ou seja, do terreiro do velho Bom-de-Ouro ao de Seu Neco Matias, o
Juá era todo pontilhado de açudes, onde os meninos tomavam banho
lutando cangapé e guerreando-se pelas paredes, atirando balas de
barro uns nos outros… Uma casa aqui, outra ali, os espaços
cobertos de flores, as cercas enfeitadas de verdes ramas, árvores
frondosas enfileiradas ao longo do aprazível recanto, todo aquele
verdor derramado pelo caminho dava ao Juá o aspecto de uma bela
alameda arborizada.
Montado na garupa do
jumento cardão do meu avô, pelo Juá, em demanda do Pau d'Arco, eu
passava todos os dias.
Um acontecimento
triste abalou toda a cidade quando, numa tarde chuvosa, de trovões e
relâmpagos fuzilantes, um raio caiu sobre uma aroeira na estrada do
Juá, cortando-a em bandas e derrubando por terra todos quantos se
encontravam nas imediações, deixando-os sem fala e fulminando, na
hora, o jovem Elias, filho de Dona Adelina do Café…
Numa casa à beira
do caminho, no Juá, morava o velho Francisco. Seu filho, Moreno, que
abraçara o cangaço, vinha cometendo uma série de atrocidades no
interior do município, destacando-se, como a mais infanda, aquela em
que um homem e uma mulher, moradores no Imbuzeiro, acusados de
delação, foram, em represália, seviciados com requintes de
crueldade. A mulher tivera a ponta da língua cortada a punhal,
enquanto o homem fora castrado… A polícia andava no encalço de
Moreno, com vontade de pegá-lo. Por isso, não lhe dava trégua.
Uma noite, uma
volante seguira o rastro daquele fora da lei até o terreiro da casa
paterna, no Juá. A casa foi cercada e a polícia toda, empiquetada,
aguardava o raiar da manhã para prender Moreno. Foi quando aconteceu
um imprevisto, desarticulando todo o dispositivo estratégico montado
pela polícia. Um soldado, deixando o posto e transgredindo a senha,
fora confundido com o inimigo, sendo alvejado por um companheiro de
farda e morrendo na hora. Estabelecida a confusão, Moreno
escapulira-se sem deixar vestígios, bafejado uma vez mais pela
sorte, que o favorecia sempre nos lances perigosos.
No outro dia, dentro
de um caixão envolto na bandeira nacional, saía da igreja, rumo ao
cemitério, o corpo do miliciano morto. Era a última homenagem do
Estado àquele que tombara no cumprimento do dever...”
(Francisco Alves de
Araújo – Veredas do Chão Nativo)
Mais uma pérola resgatada pelo mestre Hérlon Fernandes. Brilhante e detalhado texto, sempre contendo a delicada e sensibilidade atribuída à memória de quem nos deixou legado de valor imensurável.
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