SEGREDOS E REVELAÇÕES
DA HISTÓRIA DO BRASIL
A parede misteriosa de Jati e os
tesouros ocultos – Lendas em face da História – O povoamento do Cariri – A
fazenda Velha e o seu dono – Quem teria construído o açude.
Aspecto do Açude Quebrado de Jati, em 1954. O paredão ciclópico corta o leito do riacho Jardim e o povo o escava em busca de tesouros enterrados. |
Por Gustavo Barroso (da Academia Brasileira de Letras – Diretor do Museu Histórico Nacional)
Texto original publicado na revista “O Cruzeiro”, Ano 27, N° 9, de 11 de dezembro de 1954.
Mais ou menos a meio quilometro
do povoado de Jati, outrora denominado Macapá, no município cearense de Jardim,
na parte meridional da região do Cariri, se encontra, no riacho que deu nome ao
referido município, o Açude Quebrado. Trata-se de um paredão de alvenaria de
pedra com 45 metros de comprimento de margem a margem, da altura de 12 metros e
da espessura de 8, que as águas provavelmente numa cheia antiga, romperam na
extensão de 8 metros. Essa construção de caráter quase ciclópico desafia a curiosidade
de todos os que visitam e assopra nas imaginações as chamas de muitas lendas.
O tenente Otacílio Anselmo e
Silva, residente na cidade do Crato, capital do Cariri, assim descreve a
misteriosa ruinaria: “A curiosa obra de engenharia é inteiramente construída de
rocha, existindo nela pedras que pesam algumas toneladas. Quanto à argamassa, é
desconhecida, acreditando-se que tenha sido qualquer coisa semelhante ao
cimento, porquanto, ainda hoje, somente com fortes alavancas se podem arrancar
algumas lajotas, mesmo das menores dimensões, tal a resistência encontrada.
Alguns sertanejos aludem ao emprego de sangue de boi.”
Otacílio Anselmo e Gustavo Barroso no paredão do Açude Quebrado, em 1954. Blocos de pedra argamassados com sangue de boi, segundo dizia o povo do Cariri. |
Façamos um parêntese para oportuno comentário. A resistência das argamassas nas construções antigas, sobretudo nas romanas, deu origem à afirmação de que foram aglutinadas com azeite de peixe ou sangue de animais, o que somente a analise química poderá atestar. O erudito Quicherat declara, a propósito, que se submeteu a essa análise amostras de argamassa de monumentos romanos sem nunca ter encontrado o menor vestígio de qualquer substancia oleosa. Do que ele inferia ser a resistência da mesma argamassa resultado do seu traço e do tempo que se levava preparando-a, devido à barateza da mão-de-obra, em geral trabalho escravo. A massa traçada lentamente, dormida duas ou três vezes, ficaria depois de certo tempo de tal modo macerada e aglutinante que se tornava difícil ser destruída. É muito comum no Brasil a afirmação do preparo das argamassas dos edifícios coloniais com óleo de baleia. Mais rara a do emprego do sangue de boi. É de lamentar que nenhum técnico, a exemplo de Quicherat, tenha procedido à análise química que decidiria, de vez, cientificamente, a questão.
O açude foi admiravelmente
situado. Um técnico de açudagem não escolheria melhor local. Aí, o Riacho Jardim
corre apertado entre dois longos serrotes. Essa espécie de desfiladeiro vai
desembocar na vasta planura ao norte da povoação de Jati, atravessada pela
Estrada Transnordestina (atual Rodovia Santos Dumont, na BR 116). Para ela deita o sangradouro do reservatório, como se
podia ver até antes da destruição provocada pelos boatos da existência de
tesouros, o que levaria a crer num plano de irrigação daquelas terras chãs.
Aspecto da cidade de Jati cortada pela estrada Transnordestina, atual rodovia Santos Dumont, na BR 116. Foto: IBGE. |
Os moradores daquelas paragens
nada sabem da origem de semelhante obra. Nem os mais velhos se recordam de qualquer
notícia a respeito. Desde que eles e seus antepassados se entenderam que o
arruinado paredão detém parte da correnteza do rio nas épocas de inverno farto
e se ergue entre suas margens como uma interrogação. A necessidade duma
resposta à mesma se manifesta ao sabor da fantasia de cada qual. Há quem pense
em trabalho de povos misteriosos, envoltos nas brumas de remoto passado,
anteriores aos índios que habitavam a região, os famosos Cariris. Há quem,
esquecendo que eles nunca se internaram muito nos sertões, atribua esse
trabalho aos holandeses do tempo do príncipe de Nassau.
Na verdade, segundo informes
colhidos pelo tenente Otacílio Anselmo e Silva, os primeiros povoadores da zona
do antigo Macapá, troncos da velha família Vidal, vieram do Rio Grande do
Norte, sendo voz corrente entre seus descendentes que já encontraram o paredão
rompido ao meio.
No baixio, onde o açude
desaguava, viam-se os restos dum engenho de madeira para moer cana. E
acrescenta o referido Tenente: “À margem direita do rio, no ponto mais alto dum
morro, em cuja base passa a Estrada Transnordestina, na orla de Jati, há uma
clareira em terreno plano, denominada Fazenda Velha. Na infância, ainda vi
pedaços de telhas e de panelas de barro espalhados pelo chão. Alguns curiosos,
até bem pouco tempo, encontravam, em escavações procedidas naquele local, cacos
de pratos de louça de bela aparência. Diz a tradição que a Fazenda Velha era
propriedade do revolucionário Joaquim Pinto Madeira, que ali resistiu a vários
ataques dos seus inimigos. A casa era de taipa, com dupla parede.
O topônimo da Fazenda Velha
encerra pelo menos parte da decifração do enigma do Açude Quebrado. O
reservatório deveria ser dependência desse estabelecimento agrícola, decerto
construído após a grande seca de 1725, a Seca Grande, que marcou época nos
anais do Ceará. Difícil, no entanto, se torna averiguar quais os verdadeiros
autores dessa notável obra hidráulica, visto como as sombras das dúvidas,
graças à carência de documentos, cobrem os primeiros tempos históricos da zona
do Cariri. É quase certo que o descobrimento e povoação dessa região cearense
se deu entre 1660 e 1680, descobrimento pelas bandeiras baianas da famosa Casa
da Torre de Garcia d’Àvila que vararam os sertões nordestinos até o centro do
Piauí, e povoamento aqui e ali pelas primeiras mestiçagens entre fugitivos da
justiça ou prisioneiros feitos em combate, os quais acabavam participando da
vida dos selvagens das tribos que os acoitavam ou prendiam. Dois exemplos
bastarão para corroborar essa tese. Em data incerta, um escravo negro da
fazenda Várzea, à margem direita do São Francisco, que pertencia à Casa da
Torre, aprisionado pelos Cariris, entre eles viveu algum tempo. Tendo fugido,
apresentou-se ao vaqueiro Medrado, que tomava conta daquele estabelecimento
pastoril e lhe ensinou os caminhos e meios de penetrar o Cariri e destruir seus
habitantes indígenas. No começo do século XVIII, a bandeira baiana de João
Correia Arnaud, entrando por aquelas terras, encontrou vivendo entre a indiada
um tal Airosa ou Ariosa, tronco de alguns dos primeiros povoadores da região, o
qual fugira do São Francisco por ter cometido crime de morte e andar a justiça
em seu encalço.
Contudo, embora seja muito
possível e muito provável que o famigerado sertanista da Casa da Torre, Domingos
Afonso Sertão ou Certam, como então se dizia, ou Domingos Afonso do Sobrado,
tenha, no período de 1660 a 1680, descoberto e varado o Cariri, e não se
sabendo a data certa da entrada do vaqueiro Medrado, o que se pode assegurar é
que a primeira bandeira povoadora foi de fato a de João Correia Arnaud, em 1707
ou 1708. Ele aproveitou a luta que então se tratava entre índios Cariris e
Cariús para conquistar os seus domínios e esmagar sua resistência. Esse
patriarca caririense faleceu em 1771, com 82 anos, o que nos mostra que nasceu
em 1689 e veio com sua expedição com 18 ou 19 anos.
Aspecto atual do Açude Quebrado de Jati. |
Aspecto atual do Açude Quebrado de Jati. |
Aspecto atual do Açude Quebrado de Jati. |
Aspecto atual do Açude Quebrado de Jati. |
Aspecto atual do Açude Quebrado de Jati. |
Aspecto atual do Açude Quebrado de Jati. |
Aspecto atual do Riacho Jardim, à montante. |
Aspecto atual do Riacho Jardim, à jusante. |
Depois de Arnaud, vieram das terras baianas a continuar a conquista e povoamento, o coronel João Mendes Lobato, da Cotinguiba, em companhia de seu filho, o Padre Antônio Mendes Lobato. Isto deve ter sido por volta de 1718. Data de 1725 a fundação de Missão Velha. Nos anos imediatos, fundaram-se Missão Nova e Missão do Miranda. Esta última teve mais tarde o nome mudado para Vila do Crato e veio a ser cidade em 1853.
A Vila do Jardim, em cujo
território se situa o Açude Quebrado, é fundação de fins do século XVIII. Foi
inaugurada com o predicamento de vila pelo padre João Bandeira em 1816. Na
época do povoamento das missões caririneses, desabou sobre o Ceará, a Seca
Grande, que durou de 1725 a 1727. Na dos primórdios do Jardim, veio outra seca
tão terrível quanto aquela, a de 1790 a 1793. Com toda a certeza, a dolorosa
experiência dessas crises climáticas levou os antigos proprietários da Fazenda
Velha à construção dum grande reservatório de água para remediar os efeitos de
reprodução do fenômeno. Uma busca nos arquivos municipais de Crato e Jardim
poderá fornecer ao estudioso, com exatidão, notícia do proprietário dessas terras, o revolucionário de 1831-1832, Joaquim Pinto Madeira ou outro qualquer.
Esse informe tornará talvez possível a decifração completa do enigma do Açude
Quebrado.
Texto original publicado na revista “O Cruzeiro”, Ano 27, N° 9, de 11 de dezembro de 1954. |
Texto original publicado na revista “O Cruzeiro”, Ano 27, N° 9, de 11 de dezembro de 1954. |
Texto original publicado na revista “O Cruzeiro”, Ano 27, N° 9, de 11 de dezembro de 1954. |
Texto original publicado na revista “O Cruzeiro”, Ano 27, N° 9, de 11 de dezembro de 1954. |
O Enigma do Açude Quebrado, em Ceará Fatos e Fotos
Para quem quiser saber mais sobre Gustavo Barroso
Para quem quiser saber mais sobre Gustavo Barroso
Para quem quiser saber mais sobre Otacílio Anselmo e Silva
Gostaríamos de agradecer ao amigo pesquisador e escritor Luis Carolino (Luis Bento de Sousa), por nos apresentar essa fantástica história do Açude Quebrado.
Por Bruno Yacub Sampaio Cabral
Quando eu ouvir falar no Açude quebrado para mim foi um espanto saber que existe construções pré-coloniais no nosso Ceará.
ResponderExcluirUm abraço para os amigos Luis Carolino e Bruno Yacub.
Grande confrade Bruno, parabéns meu amigo por tão curiosa descrição histórica, aí dessa eu não sabia.
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