A Munganga Promoção Cultural

A MUNGANGA PROMOÇÃO CULTURAL: O Brejo é Isso!

quarta-feira, 29 de abril de 2020

HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS DE UM MENINO SERTANEJO




Quando era criança, a época mais aguardada do ano era a das férias escolares. Isso significava uma passagem para o Paraíso: a casa dos meus avós maternos, no sítio Cancelas, em Porteiras. Tenho certeza de que vovó, até hoje, na longevidade de seus 102 anos, já confundindo sua lucidez com os devaneios próprios da senilidade, deve sonhar que por lá é muito feliz.

O sítio era realmente muito mágico, porque eu, de fato, acreditava-o assim, imerso nas superstições dos mais velhos. Começava por vovô Zé Milagres, um homem bruto, sério, reduto de moral, a quem eu nunca apostaria que uma mentira havia pendido sobre seus lábios; devoto de Nossa Senhora da Conceição, irmão do Santíssimo Sacramento, botava fumo para uma “Caboquinha”, uma entidade encantada que ele jurava: protegia a mata e castigava maus caçadores e intrusos que adentrassem seus limites, sem sua permissão. O fumo era, pois, um agrado oferecido em um dos batentes da janela. Vovô confirmava que ela vinha buscar aquela oferta, soltando um fino assobio que se perdia na madrugada.


- Vovô, e como é a Caboquinha? E ela é forte assim, capaz de resistir às armas?

- Meu fi’, a Caboquinha é assim do seu tamanho, cabelos longos e negros, que cobrem até o próprio rosto. Ela tem força maior que dez homens, porque a força dela é encantada. Ela pode tudo, castiga com uns cipós invisíveis. Conheço história de cabra que saiu todo surrado, na carne viva: peia da Caboquinha. Ela também gosta de fazer travessuras, porque é criança. Quando você observar algum bicho grande, com rabo dado o nó, pode ter certeza que foi obra dela.

Uma legião de netos se aglomerava no batente da casa, sob a luz vacilante de uma lâmpada, cada qual com uma xícara grande de chá de cidreira ou capim-santo. 

Quando vovô acabava a história, era a vez de titia Alice entronizar a sua. Titia era irmã de vovó; depois que enviuvou, foi embora pra São Paulo morar um tempo com seu único filho; mas sentiu saudades do sertão e retornou, ocupando o posto de segunda avó materna, para nossa alegria. Era uma mulher de muita fé, disposta, de inspiradora seriedade, o que conferia às histórias de sua vida um atestado de veracidade. Então, quem de nós, meros pirralhos, para duvidar das histórias fantásticas de titia Alice?


- Lembra, Hosana, daquela vez que fomos comprar querosene, para os candeeiros, e voltávamos, já à noitinha, pra casa?

- Lembro demais, Alice – respondia vovó, com ar de admiração, surpresa e espanto. Naquele dia a gente quase morre de medo daquela assombração!
E a meninada arregalava os olhos, indagava sobre o que tinha acontecido.

Calculando distâncias e apontado detalhes, titia continuava:

- Quando a gente estava mais ou menos perto de casa, ali antes da casa de comadre Maru, debaixo de um juazeiro, avistamos a figura de um homem, assim transparente, sério, com cara de sofrido, como se fosse de fumaça e luz…

- Era uma alma? - alguém, admirado, perguntou.

- Era, sim. Uma alma penada de alguém que enterrou uma botija, apontando para o chão e dizendo: É aqui!

Simone, uma prima que vivia em São Paulo, neta de titia Alice, não sabia o que era uma botija, por isso indagou sobre o que seria.

- Minha neta, uma botija é tesouro amaldiçoado. Certamente foi enterrado por motivo de ambição. Há histórias de botijas riquíssimas, cheias de moedas de ouro, joias… Quem desenterra a botija, além de ficar rico, livra a alma do castigo.

- E vocês não tiveram coragem de desenterrar? - algum outro menino questionou;

Então vovó Hosana interveio:

- Pra se cavar uma botija é preciso muita coragem, muita força. À medida que você vai cavando e chegando mais perto da riqueza, mais assombrações você vai vendo. É cão pulando pra tudo que é lado, galho de árvore... Nós duas, coitadas… Quando a gente se bateu com aquele mal-assombro, só deu tempo de correr em desespero… Caímos quase desmaiadas nos pés de mamãe, querosene derramado, da cor de uma flor-de-algodão! Dormimos no escuro... Perdemos a chance de ficarmos ricas, hein, Alice?…

Não dormi nada naquela noite, impressionado, amedrontado, e fascinado com tudo aquilo. Quando estava para cochilar, ouvi um assobio fino. Certamente era a Caboquinha… Vi o dia nascer, invadindo de luz as frestas da janela.

Juro que desejei, em tantas estradas daquela meninice, que uma alma aparecesse indicando uma botija para ser arrancada. Para mim, nesse tempo, as verdades eram docemente recheadas de fantasia.


29 de Abril de 2020 – Porto Velho, Rondônia.


Hérlon Fernandes Gomes

Para os primos e primas que ouviram comigo histórias extraordinárias como estas.

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