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sábado, 19 de outubro de 2019

O ENIGMA DO AÇUDE QUEBRADO DE JATI


SEGREDOS E REVELAÇÕES DA HISTÓRIA DO BRASIL


A parede misteriosa de Jati e os tesouros ocultos – Lendas em face da História – O povoamento do Cariri – A fazenda Velha e o seu dono – Quem teria construído o açude.

Aspecto do Açude Quebrado de Jati, em 1954.
O paredão ciclópico corta o leito do riacho Jardim
e o povo o escava em busca de tesouros enterrados.


Por Gustavo Barroso (da Academia Brasileira de Letras – Diretor do Museu Histórico Nacional)

Texto original publicado na revista “O Cruzeiro”, Ano 27, N° 9, de 11 de dezembro de 1954.


Mais ou menos a meio quilometro do povoado de Jati, outrora denominado Macapá, no município cearense de Jardim, na parte meridional da região do Cariri, se encontra, no riacho que deu nome ao referido município, o Açude Quebrado. Trata-se de um paredão de alvenaria de pedra com 45 metros de comprimento de margem a margem, da altura de 12 metros e da espessura de 8, que as águas provavelmente numa cheia antiga, romperam na extensão de 8 metros. Essa construção de caráter quase ciclópico desafia a curiosidade de todos os que visitam e assopra nas imaginações as chamas de muitas lendas.

O tenente Otacílio Anselmo e Silva, residente na cidade do Crato, capital do Cariri, assim descreve a misteriosa ruinaria: “A curiosa obra de engenharia é inteiramente construída de rocha, existindo nela pedras que pesam algumas toneladas. Quanto à argamassa, é desconhecida, acreditando-se que tenha sido qualquer coisa semelhante ao cimento, porquanto, ainda hoje, somente com fortes alavancas se podem arrancar algumas lajotas, mesmo das menores dimensões, tal a resistência encontrada. Alguns sertanejos aludem ao emprego de sangue de boi.”

Otacílio Anselmo e Gustavo Barroso no paredão do Açude Quebrado, em 1954.
Blocos de pedra argamassados com sangue de boi, segundo dizia o povo do Cariri.

Façamos um parêntese para oportuno comentário. A resistência das argamassas nas construções antigas, sobretudo nas romanas, deu origem à afirmação de que foram aglutinadas com azeite de peixe ou sangue de animais, o que somente a analise química poderá atestar. O erudito Quicherat declara, a propósito, que se submeteu a essa análise amostras de argamassa de monumentos romanos sem nunca ter encontrado o menor vestígio de qualquer substancia oleosa. Do que ele inferia ser a resistência da mesma argamassa resultado do seu traço e do tempo que se levava preparando-a, devido à barateza da mão-de-obra, em geral trabalho escravo. A massa traçada lentamente, dormida duas ou três vezes, ficaria depois de certo tempo de tal modo macerada e aglutinante que se tornava difícil ser destruída. É muito comum no Brasil a afirmação do preparo das argamassas dos edifícios coloniais com óleo de baleia. Mais rara a do emprego do sangue de boi. É de lamentar que nenhum técnico, a exemplo de Quicherat, tenha procedido à análise química que decidiria, de vez, cientificamente, a questão.

O açude foi admiravelmente situado. Um técnico de açudagem não escolheria melhor local. Aí, o Riacho Jardim corre apertado entre dois longos serrotes. Essa espécie de desfiladeiro vai desembocar na vasta planura ao norte da povoação de Jati, atravessada pela Estrada Transnordestina (atual Rodovia Santos Dumont, na BR 116). Para ela deita o sangradouro do reservatório, como se podia ver até antes da destruição provocada pelos boatos da existência de tesouros, o que levaria a crer num plano de irrigação daquelas terras chãs.

Aspecto da cidade de Jati cortada pela estrada Transnordestina,
atual rodovia Santos Dumont, na BR 116. Foto: IBGE. 
Os moradores daquelas paragens nada sabem da origem de semelhante obra. Nem os mais velhos se recordam de qualquer notícia a respeito. Desde que eles e seus antepassados se entenderam que o arruinado paredão detém parte da correnteza do rio nas épocas de inverno farto e se ergue entre suas margens como uma interrogação. A necessidade duma resposta à mesma se manifesta ao sabor da fantasia de cada qual. Há quem pense em trabalho de povos misteriosos, envoltos nas brumas de remoto passado, anteriores aos índios que habitavam a região, os famosos Cariris. Há quem, esquecendo que eles nunca se internaram muito nos sertões, atribua esse trabalho aos holandeses do tempo do príncipe de Nassau.

Na verdade, segundo informes colhidos pelo tenente Otacílio Anselmo e Silva, os primeiros povoadores da zona do antigo Macapá, troncos da velha família Vidal, vieram do Rio Grande do Norte, sendo voz corrente entre seus descendentes que já encontraram o paredão rompido ao meio.

No baixio, onde o açude desaguava, viam-se os restos dum engenho de madeira para moer cana. E acrescenta o referido Tenente: “À margem direita do rio, no ponto mais alto dum morro, em cuja base passa a Estrada Transnordestina, na orla de Jati, há uma clareira em terreno plano, denominada Fazenda Velha. Na infância, ainda vi pedaços de telhas e de panelas de barro espalhados pelo chão. Alguns curiosos, até bem pouco tempo, encontravam, em escavações procedidas naquele local, cacos de pratos de louça de bela aparência. Diz a tradição que a Fazenda Velha era propriedade do revolucionário Joaquim Pinto Madeira, que ali resistiu a vários ataques dos seus inimigos. A casa era de taipa, com dupla parede.

O topônimo da Fazenda Velha encerra pelo menos parte da decifração do enigma do Açude Quebrado. O reservatório deveria ser dependência desse estabelecimento agrícola, decerto construído após a grande seca de 1725, a Seca Grande, que marcou época nos anais do Ceará. Difícil, no entanto, se torna averiguar quais os verdadeiros autores dessa notável obra hidráulica, visto como as sombras das dúvidas, graças à carência de documentos, cobrem os primeiros tempos históricos da zona do Cariri. É quase certo que o descobrimento e povoação dessa região cearense se deu entre 1660 e 1680, descobrimento pelas bandeiras baianas da famosa Casa da Torre de Garcia d’Àvila que vararam os sertões nordestinos até o centro do Piauí, e povoamento aqui e ali pelas primeiras mestiçagens entre fugitivos da justiça ou prisioneiros feitos em combate, os quais acabavam participando da vida dos selvagens das tribos que os acoitavam ou prendiam. Dois exemplos bastarão para corroborar essa tese. Em data incerta, um escravo negro da fazenda Várzea, à margem direita do São Francisco, que pertencia à Casa da Torre, aprisionado pelos Cariris, entre eles viveu algum tempo. Tendo fugido, apresentou-se ao vaqueiro Medrado, que tomava conta daquele estabelecimento pastoril e lhe ensinou os caminhos e meios de penetrar o Cariri e destruir seus habitantes indígenas. No começo do século XVIII, a bandeira baiana de João Correia Arnaud, entrando por aquelas terras, encontrou vivendo entre a indiada um tal Airosa ou Ariosa, tronco de alguns dos primeiros povoadores da região, o qual fugira do São Francisco por ter cometido crime de morte e andar a justiça em seu encalço.

Contudo, embora seja muito possível e muito provável que o famigerado sertanista da Casa da Torre, Domingos Afonso Sertão ou Certam, como então se dizia, ou Domingos Afonso do Sobrado, tenha, no período de 1660 a 1680, descoberto e varado o Cariri, e não se sabendo a data certa da entrada do vaqueiro Medrado, o que se pode assegurar é que a primeira bandeira povoadora foi de fato a de João Correia Arnaud, em 1707 ou 1708. Ele aproveitou a luta que então se tratava entre índios Cariris e Cariús para conquistar os seus domínios e esmagar sua resistência. Esse patriarca caririense faleceu em 1771, com 82 anos, o que nos mostra que nasceu em 1689 e veio com sua expedição com 18 ou 19 anos.

Aspecto atual do Açude Quebrado de Jati.

Aspecto atual do Açude Quebrado de Jati.

Aspecto atual do Açude Quebrado de Jati.

Aspecto atual do Açude Quebrado de Jati.

Aspecto atual do Açude Quebrado de Jati.

Aspecto atual do Açude Quebrado de Jati.

Aspecto atual do Riacho Jardim, à montante.

Aspecto atual do Riacho Jardim, à jusante.

Depois de Arnaud, vieram das terras baianas a continuar a conquista e povoamento, o coronel João Mendes Lobato, da Cotinguiba, em companhia de seu filho, o Padre Antônio Mendes Lobato. Isto deve ter sido por volta de 1718. Data de 1725 a fundação de Missão Velha. Nos anos imediatos, fundaram-se Missão Nova e Missão do Miranda. Esta última teve mais tarde o nome mudado para Vila do Crato e veio a ser cidade em 1853.

A Vila do Jardim, em cujo território se situa o Açude Quebrado, é fundação de fins do século XVIII. Foi inaugurada com o predicamento de vila pelo padre João Bandeira em 1816. Na época do povoamento das missões caririneses, desabou sobre o Ceará, a Seca Grande, que durou de 1725 a 1727. Na dos primórdios do Jardim, veio outra seca tão terrível quanto aquela, a de 1790 a 1793. Com toda a certeza, a dolorosa experiência dessas crises climáticas levou os antigos proprietários da Fazenda Velha à construção dum grande reservatório de água para remediar os efeitos de reprodução do fenômeno. Uma busca nos arquivos municipais de Crato e Jardim poderá fornecer ao estudioso, com exatidão, notícia do proprietário dessas terras, o revolucionário de 1831-1832, Joaquim Pinto Madeira ou outro qualquer. Esse informe tornará talvez possível a decifração completa do enigma do Açude Quebrado.

Texto original publicado na revista “O Cruzeiro”, Ano 27, N° 9, de 11 de dezembro de 1954.

Texto original publicado na revista “O Cruzeiro”, Ano 27, N° 9, de 11 de dezembro de 1954.

Texto original publicado na revista “O Cruzeiro”, Ano 27, N° 9, de 11 de dezembro de 1954.

Texto original publicado na revista “O Cruzeiro”, Ano 27, N° 9, de 11 de dezembro de 1954.


Para quem quiser saber mais sobre Otacílio Anselmo e Silva

Gostaríamos de agradecer ao amigo pesquisador e escritor Luis Carolino (Luis Bento de Sousa), por nos apresentar essa fantástica história do Açude Quebrado.

Por Bruno Yacub Sampaio Cabral

2 comentários:

  1. Quando eu ouvir falar no Açude quebrado para mim foi um espanto saber que existe construções pré-coloniais no nosso Ceará.
    Um abraço para os amigos Luis Carolino e Bruno Yacub.

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  2. Grande confrade Bruno, parabéns meu amigo por tão curiosa descrição histórica, aí dessa eu não sabia.

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